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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O Cronista Indelicado - João Miguel Tavares

João Miguel Tavares
Vou pôr este anúncio nos classificados do Correio da Manhã: "Colunista com experiência profissional em vários meios de comunicação oferece-se para reescrever todos os discursos das altas entidades do Estado português. Vocabulário de última geração. Emoção garantida. Desconto para frequentadores assíduos dos Palácios de Belém e São Bento." Se vier a ser contratado, prometo solenemente contenção nos honorários: será a minha mui modesta e patriótica contribuição para salvar o país da indigência política e da inanidade intelectual.
E não, não sou eu que sou muito esperto – os discursos públicos de quem nos governa é que andam mais vazios do que os cofres do Banco de Portugal. Numa altura de urgência como esta, ouvir Cavaco Silva e José Sócrates a arengar no 5 de Outubro faz-nos desejar estar no coche de D. Carlos enquanto ele passeava pelo Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908. Dêem-me um tiro, por favor.
Como é possível que um país que enfrenta a maior crise económica desde 1983 tenha de ser submetido a tamanha quantidade de lugares-comuns? Como é possível ainda debitar discursos com expressões como "coesão nacional", recusa do "negativismo", "cultura de diálogo e de responsabilidade", "compromisso político" e "vontade de vencer"? Tanto protocolo para tão rançosa babugem.
Os discursos do 5 de Outubro poderiam ser os discursos do 10 de Junho, do 25 de Abril, do Ano Novo, do Natal e até do 13 de Maio, se acaso Nossa Senhora fizesse a sua aparição nalgum dos parágrafos. Mais deprimente do que o défice económico, caros leitores, é este hiperbólico défice de ideias. Fazer um discurso decente não custa dinheiro. Só exige um mínimo de sensibilidade e de talento. Em vez disso, levámos com as 25 palavras ocas do costume, como se fossem o mantra que irá salvar a pátria. Até hoje, não salvou.
Nem ouvi na íntegra os citados discursos, mas concordo.
A propósito da novilíngua, lembro que esse é um dos itens das estratégias neoliberais, que se quiser saber mais, clique nos links abaixo:
O arsenal do Neoliberalismo inclui o farto uso de neologismos que procuram destruir a perspectiva histórica dando novos nomes a velhos processos ou conferir respeito a pseudoconceitos  Surgem, assim, o pós-moderno, o desenvolvimento sustentável, os movimentos sociais urbanos, a exclusão social, os actores (sociais), as ONGs, a globalização, o planeamento estratégico..., que procuram encobrir, ao contrário de revelar, a natureza do capitalismo contemporâneo.
E realmente é preciso que alguém traduza esta língua viperina.

2 comentários:

  1. Miguel Loureiro:
    Haverá quem fale português e a quem não acusem de «populismo»?
    Inócua como hoje (nisso concordo com o citado no corpo do post) só a linguagem da defunta emissora nacional dos salazarentos tempos.
    Memória hei, amigo, e com palavras luto todos os dias, palavras como «verticalidade...» e «transparência...»
    Acaso não concordará comigo?
    Angelo Ochoa

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  2. Ângelo Ochoa
    Essas palavras «verticalidade» e «transparência», já não se usam... Se calhar é que os discursos não saiam do sítio, não por falta de palavras, mas por falta de as querer usar...
    Abraço

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