O Parecer que acaba de ser emitido (64/CNECV/2012) do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre Um Modelo de Deliberação para Financiamento do Custo dos Medicamentos – e sobre o qual logo se quis dar conferência de imprensa "para esclarecimento de todas as questões relativas a esta temática" (sic) –, teve o condão começar a gerar todo um salutar e expectável coro de indignados protestos, críticas e repulsas, desde a Ordem dos Médicos (que o rotula de "redutor e desumano", interrogando: "Vamos regressar ao princípio Ceausescu de que o mais barato é o doente morto? Quem vai perguntar aos doentes se prescindem de viver mais dois meses porque é caro?"), a Liga Portuguesa Contra o Cancro (que o dá como "desnecessário, inócuo e perigoso") e a coordenação do Plano Nacional de Prevenção das Doenças Oncológicas (precisando que racionamento é "utilização limitada de um medicamento"), até às reacções – que assumidamente mais quero relevar e que politicamente partilho – de António Arnaut ("O Estado não tem autoridade moral para cortar naquilo que é essencial à vida e à dignidade humana"; "uma discricionariedade perigosa"; "uma aberração ética e um absurdo médico") e de Maria de Belém Roseira ("a estratégia de comunicação, que fala em racionamento em vez de racionalização, é o pior que há. O sublinhado no racionamento é extraordinariamente perigoso, sobretudo na presente época"; "o direito à saúde é um bem social e o pior que pode acontecer é que se transmita às pessoas a ideia de que estar doente é um peso social, ou que estar com uma doença grave é algo que tem de ser visto ponderando os custos da pessoa, esquecendo completamente os princípios éticos que devem presidir a qualquer decisão"; "Eu não quero viver num país onde a mensagem que se transmite é que os velhos são um peso para a sociedade, porque são pensionistas, e em que os doentes são considerados um peso para a sociedade, porque gastam muito dinheiro")!
– Ora já não é a primeira vez que este órgão consultivo (cujo regime jurídico, constituição, produção doutrinal, etc., podem ser consultados em http://www.cnecv.pt/index.php) emite opiniões que se revestem de evidente carácter controverso, sabendo-se ainda e para mais muito bem qual o tipo de dissensões e diferenciações internas (disciplinares, filosóficas, técnico-científicas, políticas, religiosas e éticas) que dividem os seus 17 membros (dos quais, aliás, só 11 estiveram presentes na reunião que aprovou – e quantos deles reprovam ou subscrevem? – o dito Parecer…).
Porém, neste documento – apesar dos facetamentos que a sua leitura integral não deixa de ressalvar parcialmente, conquanto mesmo assim de modo dúbio –, a verdade é que o juízo ético-político, a percepção global e a decorrente prática técnico-institucional, real ou potencialmente ali desenhados e acolhidos, encontram mesmo nele uma aberrante fundamentação (e cobertura!) para quanto perspectivam e avaliam sobre a vida humana e sobre as suas derradeiras temporalidades neste mundo, a enfermidade e o sofrimento crónicos e – por fim e implicitamente – sobre a própria prestação de cuidados médicos, clínicos, de enfermagem, paliativos, continuados e outros afins, que aos cidadãos nessas condições deveriam ser sempre imperativamente proporcionados!
Fruto de uma visão distorcida da condição humana e da justa ordenação sociopolítica, jurídico, económica e ética – aliás bem reveladora de uma alienante e alienada perspectiva materialista, economicista e até eugenista da doença e da gestão da Saúde e da Assistência Social –, este papel do CNECV, elaborado no seguimento e para satisfação do "pedido formulado por Sua Excelência o Ministro da Saúde [e] diz[endo] respeito à elaboração de um Parecer sobre a fundamentação ética para o financiamento de três grupos de fármacos, a saber retrovirais para doentes VIH+, medicamentos oncológicos e medicamentos biológicos em doentes com artrite reumatóide" (sic) –, é bem revelador de todo um conjunto de outros e idênticos racionamentos ou cortes nos direitos e deveres das pessoas e das instituições, na dignidade constitucional dos cidadãos, na justiça social e até na garantia do exercício ético, técnico e espiritual da compaixão, da competência, da salvaguarda da vida e da protecção dos mais fragilizados, indefesos ou dependentes, para não dizer da preservação do direito à vida e à morte, sem tortura, padecimento, agonia, sadismo ou para-assassinato psicofísico (e metafísico, evidentemente, para quem desta dimensão tiver o mais ínfimo vislumbre antropológico, religioso ou apenas moral…)!
– Pior do que tudo isto que agora parece tecer-se, ao que se entende, de facto, só mesmo a legalização da eutanásia, coisa que talvez não deixará de vir a caminho e de seguida, enquanto paira já nas mentes e nas cartilhas das causas "fracturantes", como o reverso incoerente e conspurcado daquilo que hoje se irá condenar e mais há-de servir para arremesso apenas táctico nas campanhas eleitorais do costume, para entretenimento de espíritos entorpecidos e canalização dos votos incautos dos mais cegos, ou dos mais estúpidos…
E assim aqui chegámos, nesta desgraçada e ignara Pátria, nestes tempos de decadência, de opressão desumana e de irresponsabilidade:
– Pagar-se uma vida inteira de trabalhos, descontos, sacrifícios, impostos e contratualizadas e legítimas expectativas, para, ao final dela, uma qualquer corja política de uma qualquer série de governos de pacotilha e seus celerados ministros e conselheiros, poderem aplicar ao Povo, depois de lhe tirarem a saúde e a esperança, o fecho da corrente do soro, ou a última injecção letal!
E enquanto tudo isto se passa, o outro, coitado, na sua assustada plástica de mandarete a prazo, vai recitando Camões, como se o tivesse lido e compreendido, com a cabeça dentro da toca…
Eduardo Ferraz da Rosa
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