Contra-argumentos
Com ou sem intervenção internacional, mas provavelmente de forma mais musculada se a UE e o FMI vierem mesmo a emprestar dinheiro ao País, a austeridade parece estar para ficar. Portugal não está só e as virtudes e defeitos desta estratégia estão a ser debatidas um pouco por todo o mundo ocidental.
O Negócios lançou o debate a partir das posições contrárias de João Rodrigues e Álvaro Santos Pereira que apresentaram na sexta-feira passada os seus argumentos iniciais a favor e contra uma politica de austeridade. Desde então e até terça-feira à noite quase 1.500 pessoas consultaram as posições dos economistas, perto de mil leitores votaram no barómetro e uma dezena comentou. Até agora, à pergunta lançada, 74% dos votantes responderam "Sim".
Álvaro Santos Pereira é professor na Universidade Simon Fraser no Canadá, e João Rodrigues, é investigador da Universidade de Coimbra (CES). Ambos são bloguers prolíferos: Santos Pereira no DESMITOS e João Rodrigues nos Ladrões de Bicicletas.
Hoje é dia de contra-argumentos. Neles, João Rodrigues e Álvaro Santos Pereira aprofundam a sua visão sobre a necessidade de uma política de austeridade. Os dois economistas respondem aos argumentos do "adversário" e a reptos de alguns leitores, evidenciando visões aparentemente inconciliáveis para a saída da crise.
A votação e os comentários estão abertos até quinta-feira às 17 horas. Sexta-feira faremos o balanço deste Frente-a-Frente. Bem vindo.
João Rodrigues: "Abriu-se a torneira da austeridade..."
1. A leitura da defesa da austeridade feita por Álvaro Santos Pereira (ASP) suscita-me três questões:
a) Por que é que se tenta discutir os nossos problemas fingindo que é possível compreendê-los e resolvê-los sem considerar e alterar esta perversa configuração europeia? Do regime de crescimento económico anémico, que pressiona as finanças públicas, à inserção económica dependente, que se traduz num elevado endividamento ao exterior, uma parte fundamental dos nossos problemas chama-se euro disfuncional. Trata-se de uma moeda sem governo económico com a mesma escala, capaz de instituir políticas de combate à crise e de relançamento, em especial nas suas mal apetrechadas periferias. Neste contexto europeu, e com este ou outro governo de liberal submissão aos interesses dos "nossos parceiros", estamos condenados a um definhamento socioeconómico que só agravará o problema da dívida.
b) Por que é que quem apoia a austeridade, nunca apoia as políticas de austeridade realmente existentes? Portugal imita, em 2011, a Grécia e a Irlanda: a austeridade já não é a conta gotas. A torneira abriu-se e a história repete-se. Os economistas pré-keynesianos ganharam politicamente em toda a linha. O refúgio na retórica vaga da "gordura do Estado" é uma fuga à ética da responsabilidade. É evidente que nenhum espírito isento discordará do combate ao desperdício, aos grupos económicos que parasitam o Estado e fogem às suas responsabilidades fiscais, ou ao cancro da economia informal. No entanto, as politicas de austeridade exigidas pelos "mercados" e pelas "estúpidas" regras dos pactos europeus implicam em todo o lado fazer cortes abruptos, injustos socialmente e contraproducentes economicamente.
c) Por que é que a lógica intrínseca e as consequências inevitáveis das políticas de austeridade não são enunciadas? Estamos já em plena política à FMI, mesmo que sem uma das variáveis, a desvalorização cambial, que tornou no passado estas políticas menos destrutivas. Neste contexto, vários estudos, incluindo do próprio FMI, reconhecem que a austeridade é sempre recessiva. Os cortes nas despesas sociais e nos serviços públicos, os cortes salariais na função pública e o aumento do desemprego, que se segue à compressão da procura, aumentam o medo na economia, levando à aceitação de cortes salariais no sector privado e, com as alterações regressivas da legislação laboral associadas, a uma diminuição do poder da esmagadora maioria dos trabalhadores. Esta é a inconfessada economia política da austeridade.
2. Neste quadro político e intelectual, consolida-se um capitalismo cada vez mais medíocre, viciado na baixa dos salários, sem freios e contrapoderes colectivos, com trabalhadores desmotivados e com poucas razões para apostar na qualificação. Um capitalismo sem incentivos para atacar o problema da qualidade do nosso capital e concentrado em sectores de baixa produtividade. A preocupação com a competitividade não passa por aqui. E a preocupação com o financiamento da economia portuguesa também não. Ao afundar a economia, a austeridade perpetua um círculo vicioso implicitamente reconhecido.
3. Uma economia decente implica dar prioridade ao combate ao desemprego, evitando uma economia sem pressão salarial, com mercado interno comprimido e com fraca posição nos mercados externos, e proteger os serviços públicos e a segurança social. Uma economia decente implica também políticas industriais e de investimento robustas. Tudo isto é contrário à lógica das políticas de austeridade.
Álvaro Santos Pereira: "Fomos nós que lançámos o papão da austeridade sobre nós e não os mercados"
1. Em 2011, Portugal terá a maior dívida pública dos últimos 160 anos e a maior dívida externa desde 1892, quando declarámos uma bancarrota parcial. Porém, estes indicadores nem sequer reflectem a verdadeira realidade nacional, pois a dívida pública oficial não inclui nem as dívidas das empresas públicas (mais 24% do PIB), nem as parcerias público-privadas (PPPs), cujos encargos ascendem a quase 30% do PIB. Se adicionarmos tudo, chegamos a uma dívida pública total que tem um valor actualizado entre os 120% e os 130% do PIB. Por outras palavras, a nossa situação orçamental é muito aflitiva. E é exactamente por isso que a austeridade é inevitável.
2. É verdade, como diz o João Rodrigues, que a crise financeira internacional agravou os desequilíbrios orçamentais. Porém, não é certo que a austeridade tenha sido desenhada só para apaziguar os mercados. A austeridade surgiu porque os desequilíbrios das nossas contas públicas não são sustentáveis. Ou seja, a austeridade é o preço que estamos a pagar pela irresponsabilidade dos nossos governos e não porque os mercados nos querem fazer mal. Todos os países sofreram os efeitos da crise internacional. Todos viram descer as receitas fiscais, e todos aumentaram as despesas públicas. Contudo, os únicos países que estão hoje numa situação aflitiva já tinham em 2008 uma situação orçamental extremamente frágil (como a Grécia e Portugal), ou tiveram bolhas imobiliárias que rebentaram e desencadearam enormes crises bancárias (como a Irlanda e, provavelmente, a Espanha). Isto é, fomos nós que lançámos o papão da austeridade sobre nós e não os mercados.
3. E não se pense que o investimento público é o salvador ou o contra-ponto à austeridade. Não é. Se o investimento público tivesse qualquer poder mágico para fazer retomar a economia, já há muito que estaríamos a viver um milagre económico de proporções asiáticas. Na última década, as obras públicas (e pseudo-públicas) totalizaram quase 30% do nosso PIB. E qual foi o resultado deste investimento? Uma década de estagnação, a maior taxa de desemprego dos últimos 100 anos, e a segunda maior vaga emigratória da nossa História. Por isso, acabemos de uma vez por todas com a fábula do investimento público, pois não é por aí que está a solução.
4. Dito isto, a austeridade não pode, de facto, ser uma solução permanente. Que medidas é que podemos então tomar para vencer a crise das contas públicas? Do lado das receitas, um novo agravamento fiscal será um erro tremendo. No entanto, o Estado tem outros meios para aumentar as suas receitas. Ainda há muito por onde privatizar e há mais de 10 mil terrenos e imóveis públicos, muitos dos quais poderão ser alienados.
Do lado das despesas há muito por onde cortar, incluindo:
a) 10% dos consumos intermédios do Estado
b) 10%-15% das despesas de todas as entidades e organismos públicos não essenciais.
c) 10% e 20% dos encargos gerais do Estado (i.e., governo, Assembleia da República, etc.)
d) fim das ajudas e créditos fiscais a muitas das centenas de fundações que o Estado apoia.
e) uma real reforma do Estado que leve à fusão e extinção entre 30% e 50% de todas as entidades e organismos públicos.
5. Ou seja, o ajustamento tem de ser feito à custa do emagrecimento do Estado e não à custa dos contribuintes e dos funcionários públicos.
6. E se, mesmo assim, todas estas estratégias não chegarem, há sempre a possibilidade de termos reestruturar as nossas dívidas. Existiriam inconvenientes de curto prazo associados com essa decisão. Mas, se não tivermos alternativa...
Se quiser conhecer os primeiros argumentos de cada um dos economistas neste Frente a frente:
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