Dada a confusão política, social e religiosa que assola a Europa, o filósofo espanhol Fernando Savater pede um novo espírito de abertura a talentos, ideias e credos.
Numa das mais conhecidas e divertidas óperas de Rossini, Viagem a Reims, uma série de cidadãos de vários países da europeus que querem ir a esta cidade francesa para uma transcendental celebração principesca acabam retidos numa estalagem e são obrigados a conviver, porque precisam de cavalos que lhes permitam fazer a viagem. Este libreto parece-me uma excelente metáfora avant la lettre da situação de relativo desconcerto que a União Europeia vive hoje. Os países europeus não têm remédio senão viverem juntos em muitos aspectos sociais, culturais e económicos essenciais, mas parecem incapazes de ir mais além e de avançarem para objectivos mais ambiciosos, apesar de, a longo prazo, igualmente necessários. Pelos vistos, faltam-lhes os imprescindíveis cavalos de projectos comuns não meramente subsidiários e convicções e valores democráticos partilhados.
Os cargos mais relevantes da UE indicam, claramente, que os nossos Estados não estão dispostos a apostar numa liderança inequivocamente forte para uma missão comum. Preferiram optar por figuras de perfil discreto e moderado, capazes de criar consensos... ou de nos resignarmos com eles. E estabelece-se como um axioma que os cidadãos europeus não querem ter uma União com um perfil mais enérgico e aguerrido.
Espanha é o problema, a Europa a solução
Para muitos espanhóis da minha geração é difícil não considerar esta atitude um confortável fracasso: uma frustração. Aqueles de nós que éramos jovens durante a ditadura franquista tínhamos um entusiasmo europeísta talvez ingénuo, que se pode resumir na frase atribuída ao filósofo Ortega y Gasset: “Espanha é o problema, a Europa a solução”. Na verdade, porém, esta solução parece ter ficado muito longe das grandes expectativas que nela depositámos. Hoje, sem dúvida, compreendemos que a Europa, a União Europeia, é uma solução, mas não uma Europa qualquer nem qualquer união, mas sim uma Europa que reúna condições que actualmente parecem seriamente comprometidas, se não mesmo completamente postas de lado.
Continuo a pensar que a Europa que vale a pena é aquela que defende e representa os cidadãos, não os territórios; a que protege direitos políticos (e também deveres, evidentemente) e garantias jurídicas, muito mais do que os privilégios e as tradições vazias que costumam disfarçá-los perante o forasteiro; a Europa que mantém a integridade dos Estados de direito democráticos actualmente existentes perante as desagregadoras reivindicações étnicas, sempre retrógradas e xenófobas; a Europa da liberdade acompanhada pela solidariedade, não fechada para aqueles que por perseguição política ou necessidade económica batem à sua porta, nem entrincheirada nos seus benefícios, mas aberta: desejosa de colaborar, ajudar e partilhar. A Europa da hospitalidade racional.
A frívola boa consciência multicultural
Esta UE precisa de europeístas militantes, capazes de contrariar os políticos curtos de vistas. Em todos os países – vimo-lo na República Checa e noutras nações do Leste, mas também em Inglaterra ou na Irlanda e até mesmo em França – surgem líderes e grupos nacionalistas, partidários do proteccionismo rigoroso em relação ao exterior e do liberalismo extremo no interior, com uma mentalidade de verdadeiros hooligans de valores hipostasiados que se agarram como inamovíveis aos seus aspectos mais exclusivos para deixarem fora da festa a todo esse grande Outro a quem temem. Ou seja, europeus intransigentes só naquilo que beneficia os seus estritos (e muito cristãos, isso sim) interesses. Um integrismo que define as raízes europeias de uma maneira selectiva que privilegia a perspectiva mais conservadora e exclui de uma tradição rica, precisamente, na polémica das suas contradições.
Mas também existe outro perigo, o da frivolidade da boa consciência multicultural que se opõe ao cristianismo, o qual exclui não em nome do laicismo democrático, mas sim para defender outros dogmas religiosos que também eles se pretendem superiores às leis civis e até mesmo à versão ocidental dos direitos humanos.
A Europa desejável é aquela em que as crenças religiosas ou filosóficas são um direito de cada um, mas não o dever de ninguém, e menos ainda obrigação geral da sociedade no seu conjunto. Um espaço político radical e consequentemente laico – o que não significa ser anti-religioso – em que imperem as normas civis sobre quaisquer considerações de cariz étnico ou cultural e onde haja uma clara distinção entre o que alguns consideram pecado e o que todos devemos julgar como delito.
Uma Europa cujo espaço académico e universitário permita a mobilidade profissional de estudantes e professores, mas onde a universidade não esteja ao serviço de interesses empresariais, de rentabilidade imediata. A Europa do talento sem fronteiras, não a das nomeações e do lucro. Sim, é claro que precisamos de cavalos que nos levem mas também de cocheiros que saibam para onde queremos ir. Creio que ainda vamos a tempo.
Fernando Savater
Sem comentários:
Enviar um comentário