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sábado, 4 de dezembro de 2010

Sem abrigo, sem futuro, sem afecto…

Maria Manuela Dias Fernandes
RESUMO da Dissertação de Mestrado em Relações Interculturais – Universidade Aberta 2006
O fenómeno dos sem-abrigo, tal como se apresenta hoje na sociedade portuguesa, pode ser considerado muito recente. As características da população que pede nas ruas ou que nas mesmas pernoita, alteraram-se na última década. Com frequência nos cruzamos com pessoas dos dois sexos, de diferentes idades e etnias, estrangeiros que mal sabem falar português e que recorrem à mendicidade ou ao desenvolvimento de pequenas tarefas (arrumar carros ou lavar os vidros pára-brisas) para angariar uma pequena verba pecuniária.
A visibilidade deste problema social contribuiu para que se olhasse para o mesmo, de uma nova forma, procurando-se a sua compreensão no desenvolvimento socioeconómico da sociedade, na incapacidade de se gerarem mecanismos preventivos da situação de sem-abrigo. Ou seja, a responsabilidade individual, por doença ou ociosidade, normalmente atribuída a quem pedia uma esmola, foi diluída numa compreensão mais alargada do problema, dando-se ênfase a factores estruturais, como o desemprego, as baixas pensões e reformas, os baixos salários, as rupturas relacionais e simbólicas.
Pretendemos com este estudo, de carácter qualitativo e intensivo, dar voz a quem sobrevive em condições tão pouco dignas, para quem o exercício de cidadania, a assunção de direitos sociais, políticos e civis, se encontra arredado do seu quotidiano.
Procurámos que os sem-abrigo expusessem a forma como percepcionam o real, real este tradutor das suas vivências, das suas crenças, das suas aspirações. Realizámos entrevistas a indivíduos sem-abrigo que se encontravam em espaços públicos, abordámo-los directamente em jardins, praças e ruas da cidade do Porto.
……
REFLEXÕES FINAIS
Ao longo do trabalho empírico, tentámos aceder ao mundo interior de indivíduos sem-abrigo. Procurámos, através dos seus testemunhos, contribuir para um melhor conhecimento da sua realidade, das suas vivências, dos seus sentires, dos seus pensamentos e das suas crenças. Pretendemos fazer uma abordagem onde se desse ênfase ao ponto de vista dos próprios indivíduos sem-abrigo. Não procurámos uma representação estatística, nem resultados mensuráveis. Optámos pelo aprofundamento das temáticas analisadas de modo a evitar simplificações abusivas e reduções a evidências fáceis. Tivemos como primeira preocupação a obtenção do consentimento dos indivíduos entrevistados, não obstante nos questionarmos sobre até que ponto a “intrusão consentida” não interferiu com a privacidade, com a intimidade e mesmo com a identidade dos inquiridos, pela inevitabilidade de se induzirem respostas num contexto de disparidade social.
Despojados de bens materiais, maioritariamente associados a processos desqualificantes como o insucesso escolar, o abandono precoce da escola, a integração precoce e precária no mundo do trabalho, a sujeição a processos laborais desqualificados pelo (ab)uso da força manual, o desemprego de longa duração, as rupturas familiares e afectivas, a presença de hábitos alcoólicos e toxicodependentes, os inquiridos são simultaneamente tolerados e relegados pelos outros que os rodeiam. “Hoje em dia, a maior parte das vezes em que se fala de pobreza ou exclusão, tem-se em mente a situação dos sem-abrigo” (Costa, 1998: 80).
Ser-se sem-abrigo acarreta, para além de uma dimensão objectiva, o peso do estigma social de uma visibilidade incómoda. Vivenciam estes sem-abrigo um percurso descendente, (Gonçalves, 1994: 142), manifesto numa avaliação ou interiorização negativa da sua actual situação. O processo de identificação é um processo construído por interacções sociais recentes nos trajectos de vida dos indivíduos. As referências identitárias dos inquiridos manifestam-se, tal como o afirma Paula Guerra (1992), no dia-a-dia, na repetitividade dos seus actos, na ocupação que fazem do espaço, na forma como vivem o tempo. A ritualização quotidiana (Guerra, 1992), concede a possibilidade da transmissão de segurança, de protecção contra o desconhecido, de uma forma de contornar as incertezas ou mesmo a percepção da ausência de um futuro. Esta ritualização ganha tanto mais importância, por se tratar de pessoas sós, que foram perdendo ao longo da vida, principalmente desde que se encontram na situação de sem-abrigo, as suas tradicionais referências identitárias e que se vêem incapacitadas de reivindicar os seus direitos, de exercerem os seus direitos de cidadania.
A investigação científica sobre a problemática dos sem-abrigo, como já vimos, é muito recente no nosso país. Procurámos, com este trabalho, dar um pequeno contributo para o conhecimento desta população, tendo consciência que muitas temáticas ficam ainda por aprofundar, senão mesmo por serem analisadas. Neste enquadramento, consideramos que se poderão privilegiar questões de género, questões relacionadas com os papéis sociais atribuídos ao homem e à mulher. Numa sociedade em que a família ocupa um lugar de destaque e de reconhecida importância na socialização dos seus elementos, onde são definidos em primeira instância os papéis sociais em função do género, cabendo ainda à mulher o papel principal de orientação e de organização das tarefas domésticas, onde se inclui os cuidados a dependentes (crianças e idosos), poder-se-á questionar se é no seio das famílias que se encontrarão as razões subjacentes ao número inferior de mulheres na situação de sem-abrigo relativamente aos homens.
Numa outra linha de análise, consideramos que uma das questões que poderá e deverá ser analisada com maior acuidade é a relação entre o tempo de permanência na situação de sem-abrigo e as hipóteses de superação da mesma, cruzando diferentes eixos de investigação que vão desde uma avaliação macro, condições reais que a sociedade poderá e deverá proporcionar para colmatar situações de insolvência económica, passando pelo papel das instituições (reforço da situação ou autonomização dos indivíduos sem-abrigo), até ao nível micro, relacionado com condições pessoais, com atitudes e comportamentos de adaptação/acomodação à situação de sem-abrigo.
No livro de Bento e Barreto (2002) os sem-abrigo são abordados sob o prisma da ausência do amor nas suas vidas, sabendo que o mesmo só existe na e pela interacção social, nomeadamente “quando envolve o reconhecimento e o interesse pela outra pessoa na individualidade própria” (Bento e Barreto, 2002: 243). A este propósito recordamos um registo que efectuámos no nosso Diário de Campo.
Dia 8 de Outubro de 2004 – 14 H – Jardim da Trindade.
Estava sentada num banco, estava sozinha. Não pedia. Estava com a cabeça ligeiramente inclinada para o chão. No final da entrevista dei-lhe algum dinheiro.
Aceitou, pois tinha dito que ainda não tinha comido. Perguntei-lhe se queria que lhe tirasse uma fotografia. Manifestou contentamento e arranjou-se para a fotografia.
Fiquei de lha entregar. Fiquei ainda de lhe levar alguma roupa. Tinha ficado admirada com o gravador, parecia que nunca tinha visto um gravador. Deixei-a ouvir a sua voz gravada, ficou admirada, espantada, como uma criança.
Fechados no silêncio, os sem-abrigo vivem a (in)certeza de uma vida esquecida ou a esquecer, de uma vida intransponível e parada no tempo. Silêncio sentido e vivido ou silêncio atribuído? Ou ainda silêncios, múltiplos silêncios, um muro de incomunicabilidades que os fecha e os reduz a um mundo interior, a uma dor secreta feita de solidão.
Os Sem-abrigo, que quase nem os vemos, ou não os queremos ver, por serem um problema humanamente tão chocante na sociedade de hoje, mas que o futuro breve nos faz adivinhar que vão aumentar pelas causas que estão na sua génese e “a pedido de várias famílias”, merecem que pensemos neles, só por sermos seus semelhantes.
Do que procurei e que fosse sucinto, não encontrei muitas publicações sobre pessoas (50% referiam-se a animais) e por isso deixo este trabalho como sugestão, publicando apenas o Resumo e as Reflexões Finais, para abrir o apetite da leitura, ou caso não aconteça, se fique a saber alguma coisinha desta “coisa”, que incomoda.
E o reconhecimento de todos nós, aos voluntários que os vão amparando.

4 comentários:

  1. Valeu e vale a pena abrir esta discussão/reflexão. Há quem defenda que muitos dos sem abrigo, o são por opção. Custa-me a acreditar, embora o admita, mas numa escala muito ténue.
    Só, em recordar que 1% da população do PORTO, cerca de 2.400, são sem abrigo, teremos em todo o País, aproximadamente um milhão. É aterrador.

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  2. Craveiro
    Aterrador é o futuro, o nosso, mas mais o dos nossos descendentes, porque os Sem-abrigo, nem o passado querem guardar, nem vêem qualquer futuro...

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  3. É aterrador, mas um reflexo da crise económica em que vivemos. Segundo creio, a grande maioria das situações são provocadas por problemas psíquicos, nomeadamente, de alcoolismo e drogas, mas mesmo nestes casos, está sempre por detrás um problema económico. Não podemios esquecer que a falta de "money" pode levar a graves problemas psíquicos, dizem os entendidos.

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  4. Carlos Costa
    Os Sem-abrigo já vêm de longe, com a invasão das cidades e a desertificação dos campos, mas a crise atira muita mais gente para a valeta, que as razões económicas fazem emergir os problemas psíquicos e os respectivos aditivos, sejam quais forem. E a família, quase sempre...

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