A discussão à volta da sustentabilidade do Estado social está concentrada nas pensões. Por causa do elevado peso orçamental, da sua relevância geracional e das consequências individuais e familiares.
Bagão Félix
O tempo de severa austeridade veio acentuar esta controvérsia. Compreendo os constrangimentos dos responsáveis políticos emparedados entre credores infra-sensíveis ao bem comum. Acompanho as enormes dificuldades de governação e não me deixo seduzir pela tentação do fácil. Percebo até algum desconforto com a actual moldura do Estado social, que urge reformar.
O que me custa a entender é a obsessão de colocar em primeiro lugar os sacrifícios sobre quem deveria ser o último recurso depois de escrutinado tudo o resto. Assim como usar-se a Segurança Social (SS) como mero volante orçamental de curto prazo, erodindo a sua base contributiva, delapidando a confiança no contrato social e caminhando para um assistencialismo redutor. Uma SS que, todavia, em termos de reformas estruturais, até pede meças à maioria dos países da UE. Custa-me ver incitamentos à fragmentação geracional de jovens contra velhos e vice-versa, como se os velhos de hoje, quando novos, tivessem tido as condições dos tempos de agora. Qualquer reforma social civilizada, com pés e cabeça, exige tempo de maturação, diálogo social intenso e elaborada fase de transição.
Analiso sumariamente alguns pontos, procurando contribuir para uma discussão aberta que vá para além dos chavões habituais, das meras cartilhas ideológicas e de um certo amadorismo em voga.
1. A sustentabilidade do sistema das pensões
É recorrente falar-se da taxa de dependência que gera uma situação cada vez mais adversa em termos de financiamento das pensões pelos activos. Esta constatação, todavia, exige uma acrescida reflexão. Desde logo, porque em vez de activos deveremos falar de activos empregados. Arrisco a dizer que não é tanto o problema da demografia que dificulta, a prazo, o equilíbrio da SS, mas as elevadas taxas de desemprego. O custo global para a Segurança Social (subsídio de desemprego + não-recebimento de TSU e IRS dos desempregados subsidiados ou não) é de cerca de 7.000 milhões € (valor igual a 61% das pensões na sua componente contributiva!). Entre o 3.º trimestre de 2008 (início da crise) e o 3.º trimestre de 2013, a população empregada diminuiu em 642.000 pessoas, que assim deixaram de ser uma importante fonte de receita tributária. Esta é a questão central, até porque para o efeito demográfico há mecanismos que, pelo menos, o esbatem, como o “factor de sustentabilidade” (preferiria chamar-lhe “factor de longevidade”), que é uma espécie de “estabilizador automático” da idade de reforma.
Além disso, a evolução demográfica deve ser perspectivada dos 2 lados. Se é certo que se vive mais tempo, também se nasce muito menos. Ora isto significa que o peso das pensões é maior, mas também o mesmo valor (real) de salários de há 40 anos é agora repartido por menos filhos e, assim sendo, há maior capacidade de aforro familiar.
2. A questão dos direitos constituídos
Chamo-lhes “constituídos” ou “formados” e não “adquiridos”, para evitar a carga ideológica associada a esta última expressão. De facto, não são adquiridos por via programático-constitucional ou politicamente volitiva. São constituídos através de um tributo que significa uma poupança forçada por via legal. A pensão contributiva não é um “bónus”, mas um crédito sobre um direito de propriedade sujeito a impostos. Não vale a pena aludir, com ligeireza, à circunstância de o financiamento das pensões ser numa base de repartição e não de capitalização. Não confundamos as coisas: a falta de legitimação de cortes como os que estão a ser praticados não está relacionada com o método de financiamento, tal qual o direito à remuneração do trabalho não está dependente da forma de provisionamento pela entidade empregadora.
Aliás, a discussão entre só capitalização e só repartição é estéril: primeiro, não há possibilidade de, numa fase de transição, os actuais activos financiarem as pensões dos actuais reformados e das suas próprias futuras pensões; segundo, porque a capitalização dificilmente cobre a deterioração do valor real das pensões por via da inflação; terceiro, porque a capitalização não oferece mais segurança em tempos de crise, pois está também indefesa perante a recorrente tentação confiscatória do Estado. Aliás, sobre este ponto é elucidativo o que se passa com o Fundo de Estabilização da SS (cerca de 11.000 milhões), um instrumento de capitalização de parte dos descontos para garantia em caso de ruptura financeira. Foi decidido arbitrariamente, e por razões estranhas à sua função, que este fundo passasse a ser constituído até 90% por títulos do Estado! Uma curiosa involução tipo pescadinha de rabo na boca… É como se numa família se assegurasse o pagamento de uma dívida com outra dívida.
Evidentemente que os reformados devem ser chamados em termos solidários a contribuir para a saída da crise. Mas que tal se faça através da tributação universal, progressiva e não-discriminatória, não destruindo as bases de um Estado decente e cumpridor dos seus deveres.
Um caso esdrúxulo é o do corte de pensões de viuvez como se sobre elas já não incidissem todos os impostos que recaem sobre os rendimentos do trabalho. Abolido o imposto sucessório para cônjuges e filhos em 2002, eis que ele volta agora, em prestações mensais, sob a forma confiscatória de parte da pensão do(a) viúvo(a).
3. A dívida pública convencional e a dívida pública implícita
Quando falamos de dívida pública, referimo-nos à convencional, que é a escriturada através de títulos de crédito. Fica de fora, entre outras, a dívida constituída e reconhecida pelo Estado quanto às suas responsabilidades futuras com as pensões em pagamento e com os futuros reformados.
Quando alguns fundos de pensões transitaram para o Estado, tal traduziu-se na constituição de uma receita extraordinária num ano (os activos dos fundos), com a constituição de futura dívida (não sob a forma de obrigações do Tesouro, mas de pensões). Ao contrário do que se exige aos fundos de pensões, que são obrigados a deter activos que cumpram as responsabilidades futuras, os Estados ignoram esta componente de dívida. Encurtando caminhos, pergunto: se o Estado quer (e bem) ser plenamente cumpridor com os credores detentores de Títulos de Tesouro ou com os empréstimos da troika, não deveria ter o mesmo tratamento para os credores por via das pensões? Ou há credores mais privilegiados do que outros, com os reformados sujeitos a haircuts impositivos e à mão de semear?
4. A idade da reforma
Têm passado despercebidas algumas questões à volta do aumento da idade de reforma para os 66 anos. Já nem falo do expediente tecnicamente pouco elegante de retroagir o factor de sustentabilidade de 2006 para 2000 de modo a se chegar a 12% (1% por mês) de aumento da esperança de vida aos 65 anos (EMV65) e, portanto, a “justificar” a nova idade de reforma. Mas poucos se terão dado conta de que Portugal vai entrar no Guinness nesta matéria de experimentalismo social e de cobaia troikiana. É que, em 2014, a idade de reforma sobe automaticamente de 65 para 66 anos (o Governo resistiu à loucura de passar automaticamente para 67 anos, como queria o FMI). Não há, assim, qualquer período de transição, como sempre existiu em todo o mundo (por exemplo, na Alemanha, subiu para os 67 anos, mas a transição vai fazer-se progressivamente em mais de uma década).
Uma pessoa que faz 65 anos em 1 de Janeiro de 2014 poderia reformar-se a partir desse dia com a lei vigente em Dezembro deste ano. Mas agora vão anunciar-lhe que, afinal, só se pode reformar um ano depois, em 1/1/2015! Além de falta de sensibilidade, estamos perante um quadro em que milhares de pessoas vão estar mais um ano a trabalhar sem motivação e provável menor produtividade, ao mesmo tempo que os desempregados terão que esperar…
Simultaneamente, vai desaparecer a opção no actual sistema de um beneficiário se poder reformar aos 65 anos com a penalização do factor de sustentabilidade ou trabalhar mais o tempo necessário para não ter penalização. Em suma, em 2014 ou se tem 66 anos e se pode reformar ou se está entre os 65 e os 66 anos, não tendo já a opção de se reformar, ainda que com desconto. No próximo ano, não haverá novos pensionistas por velhice, a não ser os que já constituíram esse direito em 2013 e que se distraíram no pedido. Isto, nem no Burundi!
Aliás, só assim se explica o significativo valor de “poupança” (205 milhões) com esta medida, designada friamente no OE como ajuste da idade de acesso à pensão de velhice com base no factor de sustentabilidade. Inventou-se uma nova figura de finanças públicas depois das tão faladas receitas extraordinárias: uma não-despesa extraordinária. É que, sendo a EMV65 de quase 20 anos, a SS poupará 5% (1/20 das pensões de novos reformados) com um ano de pensão não-pago em 2014, mas pagará nos anos seguintes maiores pensões a quem se poderia ter reformado (com penalização) entre os 65 e 66 anos de idade. Assim se empurra para a frente o problema...
5. A convergência dos aposentados da função pública
Sou totalmente favorável à convergência dos regimes de pensões que, aliás, vem sendo concretizada desde 1993. Duas questões, porém, são manifestamente abusivas. A alteração, com efeitos retrospectivos, da fórmula de cálculo das pensões é incompreensível, apesar dos exemplos distorcidos e demagógicos do SE da Administração Pública (que se limita à questão das pensões, sabendo que os funcionários que optaram pela função pública sopesaram os factores melhores e piores do que no sector privado). Curiosamente, para tentar passar no crivo constitucional, prevê-se uma cláusula de salvaguarda dos valores antes dos cortes, caso haja a ocorrência de crescimento e de equilíbrio orçamental em 2 anos consecutivos (o que nunca aconteceu no Portugal democrático). Ou seja, é uma convergência tão assumida que prevê a divergência no futuro. Vá lá entender-se…
Mas para quem está tão empenhado na convergência, este objectivo deveria ser levado até ao fim. Para o pior, mas também para o melhor. É que há muitos pontos onde não há a dita convergência. Por exemplo: a) o regime de pensões de sobrevivência é muito mais favorável no Regime Geral da SS; b) os pensionistas da SS podem trabalhar e, assim, melhorar a sua pensão. Na CGA tal não é permitido; c) A base de incidência das contribuições só em 2013 foi unificada. Até 2012 os salários na CGA estavam limitados ao valor do salário-base, enquanto na SS a base de incidência foi sempre muito maior.
Numa atitude de esperteza saloia, a proposta de lei previa, ainda, que na parte da pensão do aposentado relativa ao período contributivo até 2005 os salários fossem actualizados pela evolução do índice 100 da tabela remuneratória do Estado (congelado nos últimos anos) e não pelo índice de preços no consumidor, como é o caso da SS. Só este aspecto acarretaria uma diminuição não inferior a 8% nesta fatia (a maior, por agora) da aposentação. A situação era de tal modo desconchavada que o secretário de Estado admitiu há dias eliminar esta divergência… Ainda bem.
6. As pensões mínimas
É meritório o esforço feito para não penalizar as pensões mínimas e até actualizá-las face à inflação. O que já não compreendo é que o Governo, sendo tão pressuroso a introduzir condições de recursos erodindo a lógica e o fundamento dos regimes de base contributiva, não aplique aqui o mesmo critério. É que pensão mínima não quer dizer automaticamente pensão de uma pessoa pobre. Estudos realizados apontam até para que uma significativa parte destes beneficiários tenham outros recursos. Muitas pessoas obtiveram a pensão mínima pela circunstância de terem escassos descontos num tempo em que a SS dava os primeiros passos. O mais justo e razoável no contexto actual seria – aqui com toda a propriedade – usar a condição de recursos, e até aumentar mais os pensionistas que provem ter mais baixos rendimentos. E para isso existe já um benefício que poderia servir de aferição: o complemento solidário para idosos.
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