1- Não chegarão a 4 mil milhões, mas existem seguramente muitíssimas razões para que se reforme o Estado. Sabemos que há gente a mais em muitos serviços públicos e a menos em outros tantos; conhecemos a ineficiência do Estado em variadíssimos casos; vivemos com a burocracia doentia e a loucura de termos de atravessar um calvário de patamares e decisores para obter simples licenças; um nunca acabar de repartições, empresas, institutos e afins para tratar de tudo e de nada, e muitas vezes das mesmas coisas; não há quem não consiga acrescentar et ceteras aos problemas de funcionamento do Estado. O Estado quis entrar em tantas actividades, quis jogar em tantos tabuleiros, que esqueceu as suas tarefas essenciais.
Não tem sido por falta de falar dela que a reforma do Estado ainda não foi feita: não há político que não encha o peito, faça ar de estadista e fale da necessidade absoluta de se reformar o Estado.
Também não faltaram institutos, secretarias de Estado e mesmo ministérios para tratar do assunto.
A bem da verdade, foram sendo feitas algumas melhorias e só mesmo por muita má vontade ou falta de conhecimento da realidade é que se pode dizer que as coisas não estão melhores do que, por exemplo, há 10 anos. Isso tem acontecido não directamente por influência daquelas entidades especializadas, mas pelo método que normalmente funciona: pessoas competentes, com vontade de trabalhar, conhecedoras das realidade sectoriais e obedecendo a um plano bem pensado.
Todos sabemos, porém, que está muito por fazer.
Existirão muitas maneiras de começar um debate sobre a reforma do Estado, e existe, pelo menos, uma que impede qualquer discussão, qualquer plano, qualquer tipo de pensamento: "Vamos cortar 4 mil milhões na despesa do Estado."
Coberto de razão está o Presidente da República quando diz que, no fundo, essa "reforma" chama-se Orçamento do Estado. Todos os anos o Governo propõe tirar daqui, pôr ali, diminuir a verba para esta actividade, aumentar para aquela.
Começar por dizer que temos de cortar 4 mil milhões e chamar-lhe reforma é não saber o que quer dizer a palavra. Aliás, o porta-voz do Conselho de Ministros para assuntos delicados, Marques Mendes, quando anunciou a reforma apenas enunciou onde iam ser cortadas as verbas, nada mais que isso.
Uma reforma é muitíssimo mais que isso. Envolve estratégia, pensamento, estudo. Três palavras, entre outras, que não são propriamente o forte do actual Governo. Cortar eles sabem, o resto está à vista.
Sejam francos: não é reforma nenhuma, são cortes na despesa no valor de 4 mil milhões de euros - que irão ter consequências profundas, ninguém duvide - mas feitos com a "simples" intenção de cortar na despesa. Sem qualquer estratégia ou visão.
E ninguém desculpe os demagogos que sem vergonha nenhuma vêm dizer que um edifício, torto é certo, construído durante décadas se pode replanificar em 3 meses. Cortar, até em 3 dias o trabalho se faz; refazer e domar o monstro é outra coisa.
2- Uma coisa é cortar 4 mil milhões de euros na despesa do Estado, outra é reformar o Estado e outra ainda é repensar as funções do Estado.
Com o habitual pouco cuidado na utilização das palavras, o Governo tem umas vezes falado em reforma do Estado e outras em repensar as funções do Estado.
Cavaco Silva tentou esclarecer e disse ao jornal i: "Parece que o que está em causa é uma reforma profunda das funções do Estado..." Às tantas...
Pois, parece haver muita gente distraída, mas talvez fosse bom lembrar que há para aí um documento que traz definidas as funções e tarefas do Estado - chama-se Constituição.
É legítimo - e aconselhável - apresentar um projecto de revisão constitucional ou iniciar uma discussão sobre quais devem ser as tarefas e funções do Estado. O projecto será aprovado ou não, a discussão será mais ou menos profícua.
O que não pode ser feito é alterar a Constituição duma maneira clandestina secando financeiramente serviços, prestações ou o que seja que o texto prescreva.
Não é que eu pense que o Governo quer fazer isso. Acho que, coitado, a única coisa que sabe fazer é cortes cegos e seguir as ordens de Gaspar e dos loucos da troika, mas que pode ser a consequência dos seus actos, lá isso pode.
Acho o texto constitucional obsoleto, demasiado programático, carregado duma ideologia que já não espelha os valores dos portugueses. Mas é o que temos, e até ser alterado tem de ser respeitado.
Chama-se Democracia.
Pedro Marques Lopes
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