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domingo, 20 de maio de 2012

A CRISE: análises simples por “simples” intelectuais…

Podemos ser salvos pelo poder da palavra? A pobreza afeta a democracia? Precisamos de ócio? Ultrapassou-se a fronteira do que pode ser contabilizável?
Estas questões, poeiras desassossegadas em tempos difíceis, foram levantadas na 3ª sessão dos encontros-debate “Conversas à Quinta com a VISÃO”, integrados nas comemorações da publicação do número 1.000 da revista e moderados por José Carlos de Vasconcelos.
Foram muitos os que encheram a sala do Museu da Eletricidade, em Lisboa, para ouvir as opiniões do filósofo, ensaísta e antigo professor universitário José Gil, autor do livro-fenómeno “Portugal, Hoje” e o escritor de “O Medo de Existir” e professor universitário Gonçalo M. Tavares, prémios José Saramago 2005 e Portugal Telecom 2007, que sublinharam que os efeitos da crise vão muito além das análises económicas dominantes no espaço público.
Um barco chamado Europa
Como parece estar, hoje, a Europa pós-eleições francesas?
Ao repto inicial, José Gil responde, lembrando Michel Foucault: "Ele mostrou que o poder não tem uma imagem hierarquizada em cone; é múltiplo e espalhado pela sociedade. A relação entre os dois regimes de poder existentes, um livre e outro institucionalizado, em França e na Europa, foi modificada." Antes, diz o filósofo, houve fugas ao eixo Sarkozy/Merkel, vozes que preconizavam uma outra via que não a da austeridade - "um poder livre" - mas  foram "postas na ordem". "O que [François] Hollande afirmou, um misto de poder institucional e promessa de poder alternativo, vai ser posto à prova. O que isto vai dar... ninguém sabe."
"Cada vez é mais difícil separar a política do resto", opina Gonçalo M. Tavares. Usa a imagem de um barco, "chamado Europa", "cujas tábuas vão sendo trocadas" à medida dos acontecimentos, mas questiona a frase feita "estamos todos no mesmo barco". "Nós não estamos assim. Há países que empurram a ver se uma nação cai à água. Há outro país que já está no bote, fora do barco, incapaz de sobreviver às intempéries", descreve.
"Li uma notícia sobre a morte de milhares de galinhas [um abate de animais exigido por Bruxelas]. O que lhes vai acontecer é importante, tem a ver com a economia, que está na raiz desta crise", argumenta. "Há uma ideia vigente de sacrifício, de matarmos um bem de que precisamos - algo da ordem do absurdo, e que se fez durante uma década quando se recebia dinheiro para matar vacas, abater barcos (sou de Aveiro, vi isto acontecer)... Começámos a ter regras e leis complexas que tornaram esta situação aceitável. Se uma tribo da Amazónia nos visse, diria que estamos loucos."
Freud espreita no dedo que Gonçalo M. Tavares aponta às vozes omnipresentes de economistas e opinion makers nos media. "Há uma espécie de psicanálise negra na televisão: à semelhança do percurso de certas palavras no paciente, são introduzidas palavras negativas nos espetadores. Como um médico que quer ter a certeza de que não saímos dali sem ficarmos doentes", defende. 
Mencionando o livro “De quoi Sarkozy est-il le nom?” (2007), de Alain Badiou [que defende que, na política atual, já não é a personalidade do líder, mas sim a adesão que suscitam as suas palavras, que vinga], José Gil sublinha igualmente essa paralisia: "O discurso economicista invade-nos totalmente a  vida social, pessoal, familiar, o destino. Sugou o desassossego múltiplo. Inquietamo-nos apenas com o ter ou não condições para ter uma vida normal. Porque é que é mau? Porque se tornou despótico."
O que se pode fazer para salvar as galinhas, o barco, a "jangada de pedra", interroga o moderador.
O filósofo, considerado pelo Le Nouvel Observateur como um dos 25 grandes pensadores do mundo, defende um "mecanismo" que o faz trabalhar: "Articular coisinhas pequenas, que vão tendo alguma importância. Pensar, por exemplo, no que leva dois seres humanos a sentirem-se atraídos um pelo outro, ou a agredirem-se. Este problema, tão pequeno, envolve várias disciplinas." Ou seja, "se cada um de nós trabalhar no seu desejo, estaremos a resistir a ser apanhados pelo vértice económico."
Gonçalo M. Tavares foca, então, a exclusão trazida pela pobreza. "Se alguém está sobretudo a olhar para pão, preocupado em alimentar os filhos, desaparece a política. A pobreza é uma doença que nos incapacita, impede-nos de intervir. Com a pobreza, não é possível manter os mesmos níveis democráticos", assegura. Evoca um "exemplo negro" ("bom para nos alertar") da época em que os discursos nazis contabilizaram o custo por aluno, numa escala dos mais brilhantes aos surdos-mudos (estes últimos custariam, aparentemente, 6 vezes mais). "Temos que perceber que há coisas que não se contam, senão acaba o que é humano. Há agora coisas a ser contadas, que já ultrapassaram esse limite do que não pode ser contado", afirma o autor.
E enuncia outro exemplo aparentemente simples, mas de "violência de sentido único": alguém tem 5 maçãs no cesto; ao lado, outro tem uma macieira com um fruto apenas; há uma proposta de compra. "O que é terrível é que a pobreza, quando não tem tempo, vende a sua macieira por 20 maçãs apenas, porque precisa delas nos dias seguintes", alerta Tavares.
O livro como máquina de guerra
"Só se é algo no nosso tecido social, se se é avaliado. Isso é devastador, empobrece as nossas possibilidades, porque o essencial não é avaliado, é excluído", refere José Gil. O filósofo aborda ainda um tema contracorrente: o ócio. "Há certas sociedades, ditas primitivas ou exóticas, que reservam tempo, umas horas por dia, para o ócio. Paul Éluard dizia que era absolutamente necessário ao poeta ter ócio, para poder criar. A sociedade que temos é a do tempo acelerado. Já não é possível que o ócio possa ser poderoso, e com tantas possibilidades para a produção, não só poética, mas até para a produção de nós próprios."
Gonçalo M. Tavares corrobora essa ideia e exemplifica com uma situação quotidiana: a sobreocupação dos tempos livres das crianças. "Como é possível eu criar a minha individualidade, criar algo meu, se estou sempre a corresponder a atividades do exterior?"
"Como está o poder da palavra? O que é que os artistas, os pensadores, estão a fazer?", questiona José Carlos Vasconcelos. O moderador acrescenta ainda: "A falta de intervenção dos intelectuais pode dar-se pela falta de acesso [à TV, palco principal de intervenção] e pela falta de imaginação (são sempre os mesmos intervenientes) em nome das terríveis audiências."
"É bom endeusar o livro como máquina de guerra com uma certa potência. A ficção pode fazer alguma coisa, mas é limitada. Um artigo de jornal tem mais impacto do que um romance", declara Gonçalo M. Tavares e acrescenta: "Em democracia, somos violentados de várias formas. Mas a maior é sermos roubados pela linguagem." Exemplifica com uma notícia sobre o cancelamento de atribuição de 1 de 2 subsídios a pessoas com deficiência, apontando as cargas "negativas" presentes na formulação (2 subsídios...) e a realidade da notícia ("em vez de receber €70, a pessoa recebe €40...")
"Precisamos de aulas de defesa da linguagem em vez de ter aulas de karaté. Nenhuma palavra é inocente, nem uma vírgula é neutra", alerta. "Ler um bom livro pode ajudar a defendermo-nos dessa linguagem usada na política."
"A liberdade é defendida com discursos e atacada com metralhadoras." - Drummond Andrade

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