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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

No teatro da Vida, os actores são fantoches!

De Gaulle tinha exacta noção de que ao político, como ao artista, é necessário o dom, moldado pelo ofício. Cercava-se de cuidados com a expressão, ensinando: "Os maiores medem cuidadosamente as suas intervenções. Fazem delas uma arte." Tempos grandiosos aqueles em que as plateias se encantavam com a arte dos grandes mestres da palavra. As sentenças continham boas lições e o poder de mobilizar e atrair a atenção das massas. "Não tenho nada a oferecer-vos senão sangue, sacrifício, suor e lágrimas", declamava Churchill a ingleses inebriados com o fervor que o Primeiro-Ministro imprimia à convocação de guerra. "Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país", proclamava o presidente John Kennedy no seu discurso de posse, elevando o orgulho norte-americano. Pouco a pouco, a névoa do tempo tornou esquecidas as mais belas páginas da História. A cortina desceu sobre os palcos do esplendor e a era dos tribunos foi fechando portas, sob o eco da locução de Nietzsche no cume do penhasco nos Alpes de Engadine: "Vejo subir a preia-mar do niilismo." A política apequenou-se. Os actores despiram-se dos mantos litúrgicos que os cobriam de reverência. E, assim, os mais altos ideais, torpedeados pelas emboscadas da modernidade política, foram suplantados por interesses mercantilistas.
A esfera do discurso é apenas uma das frestas que deixa transparecer o rebaixamento dos padrões da política. A degradação tem sido devastadora, destruindo mitos, corrompendo administrações, sujando reputações, maltratando doutrinas e até invadindo os espaços da privacidade. A baixeza expande-se. Governantes de nações do Primeiro Mundo vêem a sua imagem embalada em escândalos e, pasmem, sob acusações de envolvimento em casos sexuais com menores e garotas de programa. É o que se diz do PM Berlusconi, da Itália. Correspondências devassadas pelo WikiLeaks mostram como as potências consideram os parceiros e os adversários. A uma lista de preconceitos somam-se digressões sobre o carácter (criticado) de figuras públicas. Por aqui, a corrosão também é intensa. O nosso sistema político, no fluxo da crise que fere a democracia representativa em todo o mundo, é balizado por um conjunto de elementos negativos: fragmentação partidária, desmotivação das bases, pasteurização ideológica, perda de força das Casas Congressuais e super-valorização dos Executivos. Também entre nós, o campo da expressão é mostra do esburacado estado da arte política.
A cada dia a galeria de gafes ganha uma nova peça. Na semana passada foi a vez do governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, que, puxando do argumento de que o dever conclama todos a pisarem na realidade, disse assim: "Quem aqui não teve uma namoradinha que teve que abortar?" Ao defender a absurda hipótese sob forte convicção - "vamos encarar a vida como ela é" -, talvez lhe tenha escapado a conclusão de que, levando ao pé da letra a peroração para cerca de 400 empresários, tirando as excepções da praxe, a conta dos abortos ultrapassaria a casa dos 300. A maneira improvisada como se usam dados (quase sempre inventados) para arrematar pontos de vista, também faz parte do mau trato que se dá à política. Quando o comandante Cabral conclama a plateia a encarar a realidade, certamente fá-lo com a intenção de expurgar a camada de hipocrisia que reveste partes do corpo político, o que, convenhamos, seria positivo. Por que, então, é alvo de críticas? Ora, porque a sua indagação é uma aleivosia, uma falseta, um exagero; além do mais, defender a legalização do aborto sob o argumento de que a sua prática é generalizada é usar um sofisma.
Por último, a questão da hipocrisia: se há real interesse em extirpar a falsidade que cerca a vida quotidiana, o orador deve incluir outros factores que não apenas aqueles que realçam um discurso para agradar a plateias.
Certos homens públicos esquecem que portam o dever de compartilhar um ideário, rotinas e acções com a colectividade. O seu mandato não lhes pertence. É do povo. Portanto, o que pensam e o que dizem devem integrar as necessidades da parte da sociedade que os elegeu. O chiste, a piada pronta, a improvisação, o jeito brincalhão de animar audiências têm que ser devidamente controlados e ajustados aos momentos, sem firulas, sob pena de se transformarem em bumerangues contra os porta-vozes. Foi assim com o próprio Lula, que, em momento de descontracção, cometeu algumas apelações. Com Maluf, que nunca se livrou do indefectível "viola, mas não mata". Com Marta Suplicy, que, Ministra do Turismo, não se conteve e, diante do caos aéreo, saiu-se com o "relaxa e goza". Ou o incontrolável Ciro Gomes, recordista de frases de péssimo gosto. Exemplo: "Fortaleza é um prostíbulo a céu aberto" (criticando a administração petista em 2008). Aliás, a dúvida persiste: ministro do governo Dilma, terá controlo para dobrar a língua?
É sabido que entre a arte (dramática ou política) e o artifício existem relações. Os políticos, como os actores teatrais, exercem papéis. Explica-se, assim, como a teatralização da vida pública gera simulação, mentiras ou falsas versões. Sob o abrigo da representação, os actores políticos desempenham também roteiros. Alguns tentam fazê-lo de maneira decente, inspirando-se no ideário original da política, que é o de bem servir a comunidade; outros exageram na interpretação do papel, fazendo uma figuração artificial e distante das expectativas das suas bases. E, por fim, existem os figurantes que, a pretexto de defender a verdade, a sinceridade, a expressão do coração, acabam por cometer tolices. A política incorpora uma liturgia própria, com ritos, costumes, semântica e estética. Os seus integrantes precisam seguir à risca ditames, valores e princípios que a inspiram. Sem fazer dela um teatro de ilusão. Ou palco para representação da sua ópera-bufa.
Gaudêncio Torquato, Jornalista, Professor Titular da USP, Consultor Político e de Comunicação 
Passem as referências ao Brasil, a ideia-mestra do texto não deixa de ser aplicável a todas as latitudes, discordando apenas da afirmação de que o tempo dos bons oradores correspondeu “às mais belas páginas da História” (santo Deus, com guerras, holocausto e mortandade).
Destaco a crítica ao “PRAGMATISMO” com que fazem as análise e nos enchem a cabeça, como se a “realidade” fosse fruto do fado e não resultado de decisões erradas de quem se propõe administrar-nos a vida, para melhor.
Grandes actores, pequenos políticos!

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