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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Mais uma narrativa, espirituosa, para memória futura…

Não vou dizer que há males que vêm por bem. Mas verifico de passagem que personagens como Mota Pinto, que era para ser nomeado para o BES o não foi, e como Granadeiro, que queria ficar na PT não ficou.
Manuel Villaverde Cabral
Num conto de sublime ironia publicado em 1922, escreve Fernando Pessoa em nome do banqueiro anarquista: “Procurei ver qual era a primeira das ficções sociais… A mais importante, da nossa época pelo menos, é o dinheiro… Como podia eu tornar-me superior à força do dinheiro? Como subjugar o dinheiro, combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e tirania, não evitando o seu encontro? O processo era só um – adquiri-lo em quantidade bastante para não lhe sentir a influência; e em quanto mais quantidade o adquirisse, tanto mais livre eu estaria dessa influência”.
Logo a seguir, o banqueiro acrescenta: “Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro, enriquecendo. Consegui… Trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais, lutei mais, ganhei mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim… Confesso-lhe, meu amigo, que não olhei a processos: empreguei tudo quanto há – o açambarcamento, o sofisma financeiro, a própria concorrência desleal… Hoje realizei o meu limitado sonho de anarquista prático e lúcido. Sou livre”. Mas só na ficção de Pessoa é que o banqueiro anarquista pôde concluir: “Quis combater as forças sociais; combati-as e, o que é mais, venci-as”.
Mas não venceu. Como Pessoa sabia pertinentemente, as forças sociais são invencíveis, sobretudo as do dinheiro! A inspiração que tirei daquela ficção é de ordem metafórica, mas creio que o seu sentido é transparente. Uma imagem mais comezinha seria a do castelo de cartas que Ricardo Salgado e a família, como é agora costume dizer, foram erguendo na convicção que nunca viria abaixo. Mas veio. Muito por obra e graça da dita família, isto é, de dentro para fora. O banqueiro não contou com outras das mais importantes forças sociais: as rivalidades e as invejas da família e dos chamados amigos. Nem com a força da crise. Nem com a força da política – especialmente a política eleitoral – em que é certo e sabido que, mais eleição menos eleição, os “amigos” de hoje, como Sócrates, acabarão por cair, sobretudo quando já não for possível imprimir mais notas de banco a fingir de dinheiro que não há.
O que dizer então da forma como acabou, por ora, a tragicomédia do banqueiro anarquista? Uma coisa é certa: melhor do que alguém poderia imaginar ainda há muito pouco tempo. É exacto que muito foi escondido pelos reguladores, nomeadamente tudo o que ocorreu entre a demissão de Salgado e o fim-de-semana em que o BES foi dividido em “bad bank” e “good bank”. Isso ter-nos-á custado no mínimo 3.000 milhões de euros, como se Portugal precisasse disso. Em compensação, foram muito significativas as contrapartidas políticas que o governo tem dado, aparentemente com o apoio do BCE e da Comissão Europeia, para os brutais custos económicos desta operação inédita, que nada tem que ver com a forma obscena como foram nacionalizadas as perdas e privatizados os ganhos do BPN.
A ideia de que os depositantes foram salvos de vez – ainda que venha a revelar-se em parte falsa – é uma ideia duplamente nova. Primeiro, as perdas não foram estatizadas nem os ganhos entregues aos responsáveis pela catástrofe. Em suma, o Estado só assumiu a sua responsabilidade pela defesa dos depositantes, mas não dos accionistas. Em segundo lugar, o governo enviou um sinal político claríssimo de que a sua função não é substituir-se à iniciativa privada quando as coisas correm mal. É possível que muitas pessoas ainda não tenham percebido isso, mas a mensagem não tem duas interpretações. Na medida em que esta aposta governamental se confirme, desde que seja visível e entendida, isso não só dará dividendos eleitorais ao governo como, sobretudo, sustentará a orientação do país à desestatização e à redução do peso tentacular do Estado – na prática, a ditadura dos sucessivos governos – sobre a nossa vida social.
De resto, num país pequeno pertencente à mais vasta comunidade monetária do mundo com o mais amplo “estado social” existente à face da terra, mas sem escapatória à crescente pressão da globalização por países gigantescos que pouco ou nada têm de democráticos, ou seja, num país como Portugal, onde o Estado controlava directamente 53% do PIB, não havia, depois da grande recessão iniciada em 2007, outra alternativa se não reduzir e reduzir o peso do governo na sociedade. Com os custos que temos pago pelo ajustamento, abriu-se em compensação a possibilidade de, no fim do túnel, a sociedade portuguesa conseguir utilizar melhor os seus recursos, enquanto membro da UE e da Zona Euro, no sentido de manter as suas aspirações sociais e equilibrar as suas contas públicas e privadas.
Não vou dizer que há males que vêm por bem. Nem pensar. Mas verifico de passagem que personagens como Mota Pinto, que era para ser nomeado para o BES o não foi, e como Granadeiro, que queria ficar na PT não ficou. Entretanto, os antigos “DDTs” desvaneceram-se do nosso horizonte. São migalhas perante o que nos custaram, mas ficam para memória futura e é disto que é feito o quotidiano da sociedade. Não é uma fábula, como a de Pessoa, mas pode ter sido um conto moral acerca da promiscuidade entre o dinheiro e a política que nos sirva de exemplo!

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