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domingo, 10 de agosto de 2014

Perder a identidade em qualquer cultura significará perder a vida

Repare bem cautelosamente se você já se viu em alguém. Pode ser alguém da família, seus pares ou membros de um grupo; alguém com quem você desenvolveu os seus afetos, a sua intimidade, cuja reciprocidade fora aumentando pouco a pouco até não parar mais. Geralmente, além de pessoas, identificámo-nos também com lugares, profissões, estudos. Mas, os que marcam mesmo as nossas vidas, a bem da verdade, são os nossos pais, irmãos, tios, tias e avós, sem desmerecer, claro, a descoberta de um amigo ou de uma pessoa amada.
Jackislandy Meira de M. Silva
Ver-se em alguém é identificar-se com esse alguém, ultrapassando os limites da aparência. Via de regra, a aparência da identidade está fixa e inerte em registos de identidade, onde cada qual apenas estampa no papel a sua face para fins burocráticos e sociais. A identidade não é simplesmente um documento de papel que carrega a sua impressão digital e a foto, bem como o nome bastante apresentável, aprisionada numa carteira no bolso, senão guardada e abandonada em gavetas ou pastas.
Perder a identidade para a cultura grega significa perder a vida, equivale a estar realmente morto: “Para os gregos, o que caracteriza a morte é a perda da identidade. Os mortos são, antes de mais nada, sem-nome ou mesmo sem-rosto. Todos os que deixam a vida tornam-se anónimos, perdem a individualidade. (...) É essa despersonalização que caracteriza a morte aos olhos dos gregos (...)”. (In FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos. Aprender a viver II. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 145).
Descobrir o seu eu no mundo, o seu lugar no tempo/espaço da história é ver-se na mais translúcida imagem da sua subjetividade; é descobrir-se para si mesmo e habitar um mundo possível, crescente, dinâmico e infinito, movido pelo despertar semelhante ao do filho de Ulisses, Telémaco, quando da sua busca incessante por notícias do pai que estava a vaguear pelo mundo, perdido e com saudades de casa.
As primeiras 4 partes ou capítulos da clássica obra de Homero, a Odisseia, revelam essa busca incansável do jovem pela confirmação dos belos feitos do seu pai, rei de Ítaca. A saída de Telémaco da ilha ao encontro do pai representa a sua saída ao encontro de si mesmo. Assim como Telémaco, um homem precisa de aventuras ou precisa satisfazer o desejo da maravilha, da curiosidade de querer ver as coisas para forjar, no sofrimento e na nostalgia de casa, a personalidade, construir o caráter e, definitivamente, encontrar o seu lugar no mundo, quem é e por que está aqui.
Todos temos uma identidade, quando sufocada e presa, grita de dentro de nós. É o grito da alma humana pelo reconhecimento da sua própria identidade.
Como não acenar aqui para a tão reconhecida obra de Milan Kundera, a identidade, em que Chantal, personagem central da trama, reclama repetidamente por identidade quando pensa: “Vivo num mundo onde os homens nunca mais irão virar-se para olhar para mim”. Só que, ao saber quem, de facto, era Chantal, pouco antes de declarar que se tinha enganado, Jean-Marc saboreia o prazer de olhar para ela e percebe que Chantal é o “seu único vínculo sentimental com o mundo”, pois “só ela, e mais ninguém, liberta-o da sua indiferença. Só por intermédio dela é capaz de se compadecer”. Acordada do seu sonho, pelo “grito” de Jean-Marc, a bela Chantal não quer perder de vista a identidade do seu amor: “Não vou mais tirar os olhos de si. Vou olhar para si sem parar”.

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