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terça-feira, 12 de agosto de 2014

A arte são sonhos com pontinhos de vista absolutos…

Há um Luciano Duarte que faz figurinhas em nicos de madeira que parecem alfinetes a observarem o mundo. São umas pessoinhas mínimas e esticadas que se amontoam nuns pedaços de lugar e ficam como se fossem gente normal. Por vezes, não são nem lascas de madeira, são grãos de arroz, e têm as mesmas caras e, igualmente, espreitam. Pessoinhas que espreitam tudo.
Colocamos a peça sobre o móvel e o móvel fica pasmado a olhar para nós.
valter hugo mãe
Esculpir tão pequenino deve ser como tocar um piano de Schubert. É preciso ter dedos breves para se chegar ao pormenor ínfimo. Alguns artesãos não perdem nada para Schubert, quero eu dizer. Criam uma delicadeza impressionante assente na mestria das formas, no circense do talento. Há sempre uma dimensão circense no talento. Uma espécie de impossível que comparece e nos provoca a admiração e o espanto. Assegura-nos da raridade.
Eu não sei o que faria Vladimir Horowitz com madeirinhas e uma lâmina na mão, mas uma escultura do Luciano Duarte pode bem parecer um Impromptu nº 3. A mesma harmonia e a mesma relação com o detalhe. Ou aqueles bordados finos de Castelo Branco. Depois de demoradamente apreciarmos um bordado de Castelo Branco nunca mais regressamos à juventude. Passamos a ter mil anos de orgulho, bons de carregar. Pássaros e árvores. Um sonho.
A arte pode querer explicar tudo acerca da vida mas comporta-se invariavelmente como um sonho. Ela eleva-se, coloca-se irremediavelmente acima do comezinho, ela é intensidade e pretensão de resposta definitiva. O Schubert e o Luciano e os bordados de Castelo Branco são pontos de vista absolutos. Não lhes falta nada. Servem para sempre. Já não passam.
Deve ser mirabolante estar deitado numa cama onde se pouse uma colcha de Castelo Branco toda cheia de mania, sedas e brilhos, dourados e azuis imperiais. Nem sei a que sabe um sono assim. Mas acho lindo. Como leio a escutar o piano baixinho e a pressentir o mundo mínimo do Luciano Duarte a assistir à minha calma. Não é calma. É imersão. Estou num lugar interior onde todas as coisas da casa me acompanham, porque todas as coisas da casa se tornam interiores. Isso é o que significa a nossa sala, o nosso quarto, os objectos, um a um, que passam a ser uma materialização da nossa personalidade. Nem tudo nos define. Apenas uma parte. Alguns objectos estão em casa simplesmente tolerados, como em visita. Não são para ficar. O que fica é o que somos. Como o Schubert.
Está calor, abro varandas para correr o ar, as cortinas espaventam e um amigo telefona-me a dizer que se vê, de onde passam os carros, a cor dos tecidos a acenar. Parece que vai descer um santo entre os panos. Eu, que estou sempre à espera de milagres e de coisas boas inacreditáveis, leio o livro e a casa. Leio a frescura possível. Adoro ler e tresler.
A gente com os clássicos russos fica em nervos. Estamos a perceber tudo acerca da perfídia humana, assistimos ao modo como as vítimas se põem a jeito, os caldos todos preparados, uma desgraça sempre anunciada, e não há o que fazer. Uma e outra vez a condição humana é a tristeza e o desalento. Lemos os russos com vontade de gritar para dentro do livro umas coisas bem gritadas às pessoas esperançadas. As esperançadas é que nos partem o coração.
Mas os livros só falam. Não escutam. É um grave defeito. Escutam raramente, talvez quando um pressentimento nos diz que há uma recompensa para o nosso particular coração. Seja como for, os livros precisavam de pessoinhas mínimas que, por serem tão pequeninas, coubessem inteiras no meio das letras, entre as palavras, e fossem avisar personagens queridas acerca da incúria dos seus sentimentos e gestos. As pessoinhas de arroz do Luciano Duarte podiam mesmo servir. Um grão tão pequeno, de carinha levantada, profundamente expressivo, custa-me a crer que não nos escute e que, sensibilizado, não fale por nós também.     

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