País era porto de esperança para os refugiados judeus e perseguidos políticos. E sala de espera para continuar viagem rumo aos EUA ou onde quer que fosse. Poucos ficaram, entre eles Ruth Arons.
Helena Ferro de Gouveia
A pequena foto em preto e branco nas suas mãos é de 1935 e mostra Ruth Arons aos 13 anos, com a irmã Ellen, na época com 10 anos, no banco de trás de um carro conversível, rumo ao ainda desconhecido Portugal. "Quando o carro deu partida, ficou aliviado e ansioso ao mesmo tempo", lembra a hoje ativa senhora de 90 anos, com os seus reluzentes cabelos grisalhos. Ela recebe a Deutsche Welle num prédio do elegante bairro das Amoreiras, em Lisboa. E as lembranças vão e voltam durante a conversa.
Ruth Arons fala um português perfeito, cheio de metáforas. De vez em quando, responde também em alemão, um idioma que ela não esqueceu. Na sala de estar da sua casa, há um armário cheio de livros: literatura clássica alemã, uma enciclopédia Brockhaus, obras de filosofia e política e o livro de culinária da sua avó.
Este livro chegou a Lisboa junto com os móveis e pertenças da família, antes que a própria avó deixasse o país, o que aconteceu depois do pogrom de 9 de novembro de 1938. Ruth Arons sente até hoje o aroma e o sabor dos pratos que sua avó cozinhou dirante quase 80 anos.
Feliz de poder deixar a Alemanha
A senhora de 90 anos lembra-se com exatidão: Adolf Hitler tinha tomado o poder 2 meses antes, quando, no dia 1° de abril de 1933, uma ação de propaganda gerou um boicote em toda a Alemanha aos estabelecimentos que pertenciam aos judeus, aos consultórios de médicos judeus e aos escritórios de advogados judeus. "O meu pai, Albert, era advogado e foi atingido de imediato: ele foi proibido de exercer a profissão. A atmosfera naquela época era terrivelmente tensa", lembra Arons.
Tinha apenas 11 anos e não compreendia o que tudo aquilo significava, mas sentia, como recorda hoje, um mal-estar difuso, uma sensação de ameaça. No seu mundo infantil, as coisas também mudavam: "Frequentávamos naquele tempo uma escola pública no bairro Charlottenburg, em Berlim. Os nossos pais tiraram-nos de lá por causa da discriminação e colocaram-nos numa outra escola num mosteiro. Os católicos pareciam-nos mais cordiais, mas era um engano: as meninas não judias recebiam em casa a proibição de manter contacto com as colegas judias. Quando saí da Alemanha, fiquei muito feliz", recorda Arons.
O seu pai percebeu cedo os rumos que as coisas tomariam. Leu-lhe a “Minha Luta”, o livro de Hitler, e levou-o muito a sério. A seguir, resolveu deixar a Alemanha com mulher e filhos enquanto ainda era possível. A família despediu-se de tudo o que lhe era caro e precioso, inclusive das esperanças e sonhos de toda uma vida.
Num carro conversível, a família Arons deixou a Alemanha rumo a Lisboa: uma viagem de 3.000 quilómetros, que para as duas irmãs começou na Suíça: ali tinham passado as férias de Natal e só ali ficaram a saber, pelos pais, que a família não mais voltaria à Alemanha. Ruth Arons lembra-se de ter sentido uma grande sensação de alívio. E a viagem, para ela, era sobretudo uma aventura: primeiro rumo a Paris, para visitar parentes, e depois em direção ao sul.
Vida na Avenida Liberdade
A cidade à beira do Tejo era naquela época uma metrópole pequena no sul da Europa. De início, 600 refugiados viviam ali à espera de um visto para continuar viagem. A grande onda de milhares de perseguidos viria 4 anos mais tarde, com a ocupação da França pelos alemães.
A família Arons morou de início – e simbolicamente – numa pensão da Avenida Liberdade: "Não sabíamos nada sobre Portugal, só conhecíamos o vinho do Porto, a cortiça e as sardinhas enlatadas, nada mais. É claro que não falávamos uma palavra de português", conta Arons.
Mas a Lisboa pacífica, iluminada e impregnada de música recebia os refugiados vindos da Alemanha de maneira cordial. Os portugueses eram prestativos e não havia obstáculos de ordem burocrática. Ruth e a sua irmã Ellen frequentavam a escola francesa – isso facilitava a adaptação, pois já haviam tido aulas de francês em Berlim. As colegas, com quem aprendiam português, eram simpáticas, lembra Ruth Arons. E nem podiam imaginar que, na Alemanha, havia crianças desta idade que estavam a ser perseguidas e discriminadas.
Paraíso triste
Poucos anos depois, Lisboa ficaria cheia de refugiados judeus e perseguidos políticos, entre estes muitos artistas, músicos, escritores e intelectuais. A imagem da cidade mudava a cada dia. E Lisboa transformava-se numa metrópole em ebulição, permeada por culturas e idiomas estrangeiros. Uma cidade na qual os caminhos se cruzavam e os destinos eram definidos; onde refugiados, espiões e a polícia política se encontravam, seja na Pastelaria Suíça ou no Café Nicola, no Bar Famous ou fora da cidade, no hotel Palácio Estoril.
Tradições diferentes e hábitos estranhos acabaram disseminando-se pela cidade. Ruth Arons recorda: "Lisboa era uma cidade pequena e, de repente, chegaram todos aqueles refugiados. Ficavam sentados na esplanada, tomando café e comendo tortinhas de creme. As mulheres iam sozinhas aos cafés e fumavam. Isso tudo era, para os moradores da cidade, uma imagem inusitada".
Como o "Berliner" chegou a Portugal
A culinária local também se enriqueceu com os hábitos pouco usuais para os nativos. Os bolinhos recheados conhecidos em diversas regiões da Alemanha como "Berliner" (berlinense, literalmente) fizeram, por exemplo, carreira na cidade à beira do Tejo. Ruth lembra-se que em 1937 uma refugiada judia fez bons negócios vendendo os seus "Berliner" caseiros. Rapidamente, os “Berliner” passaram a ser conhecidos como "Bolas de Berlim", para pouco depois se transformarem num bar popular nos cafés do Estoril e de Lisboa. Hoje, as "bolas" são parte integrante da culinária portuguesa. E Ruth aprecia essas "bolinhas fabulosas" até hoje.
Por mais que tudo soe divertido, a vida da maioria dos refugiados em Lisboa e arredores foi, a partir de 1940, tudo menos cheia de glamour: a luta pela mera sobrevivência sugava todas as forças. Era preciso organizar moradia e sustento. E Portugal era, para a maioria dos refugiados, apenas uma estação de passagem, uma espécie de sala de espera, pois a maioria dos que chegavam até ali queriam seguir viagem pelo Atlântico, procurando desesperadamente por passagens de navio, bilhetes e documentos de viagem. A comunidade judaica e o Joint Distribution Committee ajudavam, embora os recursos muitas vezes não fossem suficientes.
De uma ditadura à outra
A partir de 1942, os êxitos da Wehrmacht pareciam trazer a guerra para mais perto: "De todos os lados chegavam informações desencorajadoras", lembra Arons. O rádio ficava ligado ininterruptamente. E as notícias adquiriam um significado existencial: era o medo básico dos refugiados de perderem a oportunidade de sair. O medo de serem triturados pela máquina militar dos nazis ou se tornarem vítimas da Gestapo, que operava também em Portugal.
A família Arons pouco sabia sobre o que acontecia de facto na Alemanha nazi ou nos países europeus ocupados. Auschwitz e Dachau, com os seus crimes hediondos cometidos contra os judeus europeus, eram assuntos que só mais tarde abalariam e indignariam a família. E Ruth Arons nunca quis voltar a viver na Alemanha. Até hoje, ela se pergunta: "Onde estava Deus, quando todo esse horror aconteceu?".
Mais tarde, iria estudar na Universidade de Lisboa. Depois da guerra, viria a casar-se, tendo obtido a cidadania portuguesa. Participou do movimento de resistência ao regime de António de Oliveira Salazar, o ditador que praticou durante a II Guerra uma subtil política de neutralidade, sem estar 100% do lado dos Aliados, mas também sem se aliar aos nazis. Os refugiados judeus não quiseram, diante disto, ficar no país. O embaixador português em Bordeaux, Aristides de Sousa Mendes, foi visivelmente contra as diretrizes do governo de Salazar ao conduzir as suas ações de salvação de 30.000 perseguidos pelo nazismo.
Ruptura pela democracia
Em 1973, Portugal era a mais antiga ditadura da Europa. E, de repente, as voltas que a história dá ficavam visíveis: Alberto Arons de Carvalho, filho de Ruth Arons, fundava junto do político exilado e então futuro primeiro-ministro do país, Mário Soares, o Partido Socialista de Portugal: e isso exatamente no lugarejo Bad Münstereifel, na Alemanha. Com o apoio dos social-democratas alemães, cujo líder na época era o então chanceler federal Willy Brandt. Um ano mais tarde, eclodia a Revolução dos Cravos, trazendo a Portugal um processo de democratização. Ruth Arons sempre esteve do lado dos revolucionários e democratas.
E em breve também ela viria a ocupar um cargo: a de primeira presidente de Câmara eleita de São Mamede, um bairro de Lisboa. Talvez uma herança do seu bisavô Leon Arons, que na Alemanha Imperial atuou como cientista e ao mesmo tempo social-democrata, tendo sido um dos mentores do movimento sindical no país? Ruth Arons sorri com modéstia e diz que não "iria tão longe assim", embora esse capítulo da história da sua família seja para ela de grande importância.
Hoje, ela vê a Alemanha com sentimentos ambíguos: uma Alemanha que para ela se tornou estranha. "Portugal é o meu país. Amo Lisboa e gosto muito de viver aqui. Moro nesta rua há 50 anos, conheço toda a gente", diz ela.
A Alemanha faz parte de um passado há muito deixado para trás.
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