O bom humor e a descoberta de novos termos linguísticos foram a consequência de reunir escritores a falar sobre “desse país arranquei todos os cravos”. Rui Zink, Maria do Rosário Pedreira, Nuno Camarneiro, Luís Carlos Patraquim e Ignacio Martinez de Pisón foram intervenientes na sessão, conduzida por Carlos Quiroga. Valter Hugo Mãe, por imprevistos de última hora, não marcou presença como previsto.
Ignacio Martinez de Pisón, que abriu a mesa, associou o mote “desse país arranquei todos os cravos” aos tempos de infância, nos anos 60, de uma Espanha dominada pelo franquismo, onde imperava o “provincianismo”, que levava a que os espanhóis tomassem como “superior” tudo o que chegava do estrangeiro, só porque era diferente e mais extravagante. Era o que acontecia, por exemplo, com as novidades trazidas pelos norte-americanos instalados na base aérea de Saragoça, cidade para onde foi viver com os pais, ainda jovem, após ter crescido na ilha de Logroño.
A intervenção do escritor passou ainda pelo fim do regime de Franco, pelas desavenças entre espanhóis por causa da mudança de bandeira até à atualidade em que a crise está a fazer vir ao de cima novas contestações já se voltando a erguer bandeiras, “por exemplo, na Catalunha”, de que discorda, por contrariar a unidade e a solidariedade cosmopolita que sempre porfiou.
Luís Carlos Patraquim, que nasceu em Moçambique só porque os pais foram morar para lá, mas vive em Portugal e tem filhas portuguesas, como fez questão de explicar, considerou que o mote da Mesa é um verso bonito: “também gosto de cravos, têm a simbologia que sabemos, todos ouvimos nos últimos dias a ‘Grândola, Vila Morena’ com cabala ou sem cabala…”
O escritor afirmou que “a usurpação da verdade acontece cada vez mais e que a realidade parece que não existe”, acrescentando: “as palavras estão a ser conspurcadas”. Patraquim aproveitou para citar Afonso Cruz: “Salvem-nos da verdade absoluta”, alertando: “É preciso que nos salvemos da verdade absoluta que nos é vendida como a não existência de alternativas, tanto aqui como em Moçambique”.
Para terminar lançou o grito revolucionário: “Viva a Resistência; A luta continua!”
Maria do Rosário Pedreira está no Correntes d’Escritas desde 2001 e constatou que “raramente um poeta tem um público tão atento” como neste encontro, que, de resto, e ao analisar o impacto que o mesmo teve na sua vida, afirmou: “O Correntes d’Escritas é uma agência matrimonial disfarçada de encontro de escritores, porque foi preciso vir aqui para encontrar marido, aos 45 anos”.
O mote dos cravos levou Maria do Rosário Pedreira a focar-se numa foto de família dos seus tempos de criança, um quadro em tom “cinzento como o país”, que constituiu o ponto de partida para um rol de recordações dos tempos de infância e juventude, de histórias dos elementos da sua família (tem mais 3 irmãos), a maioria cheias de humor e bizarrias. Estas histórias foram passando por um Portugal dos anos 60, o país cinzento que floresceu com os “cravos colocados na ponta das espingardas que não dispararam um tiro” até à aquela pequena que estava na fotografia antiga atingir a idade adulta.
Durante todo este percurso de vida que apresentou ao público estava subjacente a reflexão que inquietava Maria do Rosário desde criança: “quais são os teus deveres para com a Pátria?” A pergunta foi feita num exame da 4ª classe, mas só em adulta, a escritora atinge a maturidade para descrever os seus deveres: “ler, escrever e dizer Não”, o que originou uma ovação do Auditório.
Nuno Camarneiro também emocionou a plateia ao começar a sua intervenção com uma espécie de refrão do texto que leu: “Portugal é uma dor que me apanha isto tudo” (ao mesmo tempo punha a mão no peito).
E prosseguiu: “Já matei o meu país muitas vezes por palavras, atos e omissões. Não só lhe arranquei os cravos, como as unhas, os olhos e a memória, que é o que um país tem de mais valioso. Por exemplo, a memória dos Descobrimentos, que, se eu mandasse, tinham sido feitos apenas pelos espanhóis e não se falava mais nisso; ninguém poderia dizer: somos pobres, mas já fomos um grande império.
Gostava de ver regressar D. Sebastião só para lhe dizer algumas verdades, mover-lhe um processo por gestão danosa e vê-lo nos programas da manhã a explicar que fez tudo com a melhor das intenções e aguentar a lagrimazinha no canto do olho. Mas é essa lagrimazinha ao canto do olho que é o meu país. E é por isso que eu gosto dele, embora não gostando dele, o país do «Olha, vai-se andando», do «tudo se há-de arranjar»…”
O jovem escritor foi discorrendo em tom observador sobre os pequenos feitos e defeitos dos portugueses, defendendo a certa altura que “se a nossa Pátria é a Língua portuguesa, é importante que a mantenhamos limpa (…) como o temos feito durante estes 14 anos do Correntes d’Escritas”.
A última intervenção foi de Rui Zink e foi ele quem arrancou mais gargalhadas do público, como já lhe é peculiar. Mas a brincar lá foi dizendo coisas sérias, como contestar o que algumas pessoas por vezes lhe dizem: “os escritores não devem meter-se na política, devem é escrever”. Pois, o escritor concorda que cada profissional deve dedicar-se a “fazer aquilo que faz bem”, mas vendo bem, acrescentou, “se o bombeiro deve dedicar-se a apagar fogos, se o sapateiro deve dedicar-se apenas a fazer sapatos, então, quem é que sobra para exercer o dever de cidadania, quem sobra para se manifestar?”, contrapondo a estes argumentos que “prefere conviver com escritores que são bons cidadãos” e ele próprio procura escrever e entrosar-se com o que se passa à sua volta e ser um bom cidadão, defendendo que “o nosso dever é ler e escrever com os olhos bem abertos”.
Rui Zink deu conta de um novo vocábulo que Sara Figueiredo Costa colocou no Facebook, a palavra ‘grandolar’, bem adequada depois dos últimos protestos com uma canção, “os portugueses são extraordinários, ainda por cima com uma canção alentejana”, vulgo, “lenta”, “nem sequer é com um rock”…
O escritor revelou também que inventou outro termo linguístico: ‘tempos gasparianos’ ou se quisermos ‘gasparizar’. Rui Zink aproveitou o pé em terreno político para exigir da plateia que o ‘grandolizasse’, até porque ele é “doutorado e o ministro Relvas teve que comprar a licenciatura, portanto se ele teve direito, porque é que eu não tenho? Venha daí essa ‘Grândola’, vá!” A plateia levantou-se e cantou a bons pulmões a canção da autoria de Zeca Afonso. Só faltaram os cravos…
Sem comentários:
Enviar um comentário