(per)Seguidores

sábado, 2 de março de 2013

Temos nomes e apelidos, irredutíveis a um numeral!

Aos participantes na Conferência Interdistrital do Rotary Internacional, Exponor, 23 de fevereiro de 2013
D. Manuel Clemente, Bispo do Porto
Sobre a paz, disse Santo Agostinho que é a “tranquilidade da ordem” (A Cidade de Deus, XIX, 13) e julgo ser definição a reter nos nossos dias, para permanentemente a construirmos. Refiro uma ordem que significa justa ordenação de cada parte e não mera armadura exterior de segurança.
Disse “permanentemente a construirmos”, pois não é coisa garantida para sempre, quando aparentemente exista, nem nos dispensa de uma atuação constante, atenta e comprometida. Também se diz biblicamente que “a paz é obra (fruto) da justiça”.
Comecemos então pela justiça, virtude que nos manda “dar a cada um o que lhe é devido”. Felizmente muito se avançou no campo dos direitos formalmente reconhecidos, da segunda metade do século XVIII até aos nossos dias (Declarações de Direitos Norte Americana e Francesa, Declaração da ONU, 1948…). Mas não podemos esquecer que tais declarações demoraram e demoram muito a concretizar-se na prática das sociedades. Como infelizmente constatamos que, nos séculos XX e já XXI, se sucederam atrocidades várias e a uma escala nunca vista…
É realmente importante que, em termos de ideias e regras subscritas, tenhamos atingido aquelas plataformas de direitos. O contrário seria a descrença na natureza humana, como realidade básica e comum da nossa dignidade a salvaguardar e o regresso à lei do mais forte, ainda verificável aqui ou ali (demasiados “aquis” e “alis”, infelizmente).
Acontece que, neste ponto, se revelam as contradições da globalização crescente da vida mundial, fenómeno irrecusável mas ambíguo. Desde que o nosso Gama abriu a ligação marítima e direta entre a Europa e a Índia, coeva da “descoberta” europeia da América, a mentalidade geral foi olhando o planeta como um todo, ainda que cheio de contrastes - que eram outros tantos desafios a alargar o próprio conceito da nossa humanidade compartilhada. A revolução industrial, a busca de matérias-primas, o desenvolvimento dos transportes e das comunicações, agora instantâneas, tudo nos levou ao que somos hoje, como ideia e representação de nós mesmos, neste sentido “globais”.
Todavia, estes fatores que podemos considerar positivos, têm o seu lado problemático, quando tornam as sociedades mais “fracas” muito vulneráveis aos interesses externos, e quando nos fazem passar rapidamente demais do plano individual ao geral, sem ter em conta o que está mais ao pé e deve ser localmente resolvido. Usando linguagem evangélica, podemos dizer que está em causa precisamente o “próximo”, a proximidade ativa e responsável.
O horizonte geral que a globalização nos foi dando é inquestionavelmente um bem, propício até ao reforço da solidariedade internacional. Mas o alheamento do que diretamente nos rodeia põe em causa um outro princípio indispensável, a subsidiariedade, que sempre requer a participação de cada parte interessada, ou corpo intermédio, na resolução social que se pretenda. Só na conjugação da solidariedade geral com a subsidiariedade das partes se dá verdadeiramente a cada um o que lhe é devido – em termos de reconhecimento, oportunidade e estímulo -, ou seja, se garante a justiça, cujo fruto é a paz.
As repercussões são óbvias, em campos tão variados como as famílias, os grupos socioculturais de pertença, as associações de todo o género, as autarquias, as escolas e tudo mais de interesse público, etc. Se estas realidades – que são outras tantas dimensões da nossa personalidade e essência relacional forem desativadas por qualquer imediatismo generalizador, nacional ou multinacional que seja, a paz correrá graves riscos, porque nem se respeita a ordem correta das coisas nem se reconhece e proporciona a cada um o que lhe é devido.
Sem olhar negativamente demais para o nosso caso português, podemos detetar elementos positivos a este respeito, como sejam as concretizações associativas que perduram – sabe Deus com quanta abnegação de muitos! -, ou aparecem entretanto, com múltiplas incidências na sociedade e na cultura. – O que seria de nós, por exemplo, se, além do Estado Social que vai subsistindo quanto pode e temos certamente de defender e promover, faltasse esta capacidade demonstrada de atendermos mais espontaneamente às necessidades acrescidas?
Mas temos de reconhecer que a nossa vida coletiva se faz ainda e muito – crescentemente até? – do topo para a base, quando melhor seria que acontecesse, sobretudo ou também, das periferias para o centro. Do topo para a base, usando ainda terminologia de tipo vertical e descendente, típica de tempos e sociologias que afinal não estão tão ultrapassadas como julgaríamos…
Não foi assim há tanto tempo que se deixou de falar do “Senhor Governo”, que alguns pensavam ser realmente alguém que tudo decidia em sítio algo mítico (num “Terreiro do Paço”, que já nem o era desde o século XVIII…). E a mentalidade ainda se pode manifestar, de baixo ou de cima, mesmo em tempos felizmente democráticos e com eleições livres e periódicas.
É verdade que a mediatização geral da informação e da resposta pode potenciar tal facto, por dar a ideia de que as coisas se resolverão mais depressa, em ligação direta topo - base e vice-versa. A própria internacionalização ou mundialização de muitos aspetos da vida socioeconómica, política e até particular, parece requerer este tipo de atuações, indo logo a Bruxelas ou a Nova Iorque, passando ou não por Lisboa. Mas a pergunta deve fazer-se: - É assim, predominantemente assim, que se resolverão humanamente as coisas?
Pergunta tanto mais insistente, quando verificamos que o tratamento de qualquer assunto pelo geral dilui a densidade pessoal das sociedades e rapidamente desmotiva as cidadanias. Entre o topo e a base, quase nada sobra de intermédio, para não “atrasar” soluções nem perder tempo, como se o tempo nos fosse completamente exterior e não uma dimensão essencial do ser humano e relacional.
E o problema é deixarmos de ser sociedades propriamente ditas, isto é, grupos de “sócios”: palavra latina que se traduz por companheiros, colaboradores, pessoas entre pessoas e umas com as outras, para manter e alcançar desígnios comuns.
Não é uma fatalidade que tal aconteça. Afinal, basta-nos ser realistas e olharmo-nos como realmente somos, ao ritmo da vida que acontece. Geralmente, nem nascemos desvinculados nem crescemos anónimos, mas sim uns pelos outros, uns com os outros e uns para os outros, família a família, terra a terra, caso a caso. Crescemos e vivemos nas periferias das nossas delimitações e responsabilidades imediatas e inalienáveis, em recortes sociais mutuamente abertos e por isso relacionados com os centros comuns das nossas periferias mais amplas, nacionais ou internacionais que sejam. Mas assim mesmo somos e devemos ser. Por isso temos nomes e apelidos, irredutíveis a um numeral qualquer.
E é por isso, caros rotários, que tudo quanto aproxime e suscite solidariedades, ou ative proximidades, é vital para a paz e a harmonia pessoal e interpessoal. Numa ordem que não virá de fora, mas da conjugação vital de todos e de cada um, nas múltiplas expressões que a sociabilidade alcança. Quanto mais globais, mais participativos, para encontrarmos soluções à altura das atuais questões. Aliás, e humanamente falando, nunca nada se resolveu inteiramente sozinho.

Sem comentários:

Enviar um comentário