A penúltima mesa do Correntes d’Escritas reuniu Andréa del Fuego, Cristina Carvalho, Jaime Rocha, João Tordo, Joel Neto e Possidónio Cachapa. Moderada por Onésimo Teotónio Almeida, tinha como tema o verso de Luís Filipe Castro Mendes, “Os meus textos não têm serventia”.
Para Andréa del Fuego, muita da interação humana passa pelo texto. O texto é formado por tijolos, um a um em sequência, vão subindo castelos, edificam em todos os sentidos.
A escritora referiu que “pode-se viver sem literatura ainda que não se possa viver sem literatura. Até a biologia humana tem uma escrita que a representa, a cadeia de ADN”. “Os meus textos são radiografias cuja interpretação pode ser feita por cada um que lhe possa dar o significado que quiser porque a mancha sobre a folha não fornece certezas”, constatou.
Na sua opinião, “o corpo está inteiro na escrita. Primeiro, talvez, não seja o verbo mas a carne”. Para a escritora brasileira, todas as artes têm a sua análise no texto. A literatura é a arte mais eficaz para aceitarmos o fim do corpo e sermos tijolo de uma construção que não veremos finalizada.
A passagem do tempo e a existência humana foram tratadas por Cristina Carvalho para questionar a serventia dos textos. “Muito antes, mas mesmo muito antes de eu falar, de eu ser, de existir sequer no pensamento de alguém, antes desse alguém ser alguém, no tempo infinito, outros homens falaram, outros homens pensaram, outros homens escreveram”.
E o seu texto começou assim: “Eu que já sou muitíssimo velha, já deixei de ter idade para contar os anos que passam, cheguei a viver numa época que não era época, em que nada existia à superfície da terra. Nunca conheci ninguém. A terra no tempo de ninguém, numa das minhas vidas, era somente uma terra. Nada mais era visível além de uma atmosfera cinzenta e húmida. Encontrava-me ali sozinha. Nessa altura devia ser quase criança. Hoje, depois de tantos milhares, milhões de anos passados lembro-me com dificuldade de certas coisas, tenho reminiscências vagas. No entanto, há sítios, locais e situações que, sem eu ter consciência disso, me despertam lembranças nítidas. Um dia, muito mais tarde, já eu era adulta, havia uma pessoa igual a mim.
Atravessei épocas diferentes, hábitos estranhíssimos, maneiras de falar esquisitas que eu não percebia. Foi cansativo crescer e, sobretudo, aprender a falar. Hoje em dia, estou cansada. Cheguei à conclusão que muito pouca coisa tem importância. Tudo acontece e tudo se desvanece mais cedo ou mais tarde. Eu quero é dormir tranquilamente, as palavras apoquentam-me.
Nunca soube ler nem escrever e se soubesse escrever que serventia teria aquilo que escrevo. Nenhuma. O que quer que escrevesse faria parte de um ócio desmesurado, de uma vontade de não fazer nada. Quanto mais cresço na eternidade, essa coisa de fazer alguma coisa de jeito me transcende. Hoje, por eu já ser talvez muito velha, não entendo nada do que me dizem. Nada tem grande importância. Para que servem os textos que escrevemos? Para que servem as palavras que vêm de uma idade anterior a nós?”
E sobre a atualidade, Cristina Carvalho disse que “parece incompreensível e inatacável esta situação que agora vivemos, desgraça a todos os níveis”. E por achar que “neste momento todas as ocasiões são insuficientes”, aproveitou a ocasião para “expressar a minha mais profunda indignação, revolta e impotência pelo nosso futuro, pelo futuro da juventude de Portugal que se apresenta muito escuro e desanimável. Nunca pensei vivermos numa situação destas numa Europa que sempre sonhei já que nasci europeia”.
Ao verso “os meus textos não têm serventia”, Jaime Rocha começou por afirmar “há muito que o sabia” mas “só confrontado com esta frase reproduzida em papel me veio à ideia contradizê-la, baseando-me, para isso, uma experiência muito pessoal. “Pelo menos na minha rua são motivo para as pessoas me dirigirem a palavra”. Esta foi a conclusão do escritor depois de partilhar com o público uma pequena história em que fala dos seus vizinhos. Um dos seus vizinhos, a quem havia oferecido o seu romance A Rapariga sem Carne, disse-lhe que o seu livro o aquecia nas noites frias de Inverno. “Essa foi a coisa mais excitante que me disseram a propósito dos meus textos”, comentou. Um outro perguntara-lhe se era escritor, “queria apenas saber a minha profissão. Mas o outro não me larga e diz que quer ler os meus livros todos. Espera é que seja eu a oferecer-lhe mais livros. Um outro vizinho trata-me agora por senhor doutor, o que é mil vezes mais importante do que ser escritor”.
João Tordo provou a utilidade dos textos com divertidíssimos episódios, demonstrando, logo à partida, que “servem para reparar injustiças e para a gente se vingar”. “Os textos não têm serventia, mas podem ser uma reconciliação”.
Joel Neto, escritor açoriano, referiu-se à utilidade dos textos na idade adulta, “os livros serviam para regressar a casa. Só os livros conseguiam devolver-me à ilha. Escrever como ler continua a ser sobretudo um modo de voltar, de voltar à infância, de voltar a casa, um modo de fazer as pazes e de continuar” e se não tivessem sido os livros não conseguiria ter vivido tantos anos em Lisboa, longe da ilha.
Possidónio Cachapa assumiu que duvida constantemente da utilidade do que escreve. Não escrevo para a serventia da forma, revelou. A minha escrita e o meu coração estão cada vez mais próximos. Os meus textos não servem para mais do que os dos outros, o que os outros escrevem por razões que estão para lá de si, para lá do tempo em que vivem. Servem, sobretudo, para dizer que nem todos os homens se calam, alguns insistem em pensar e em dizer o que pensam. E a utilidade de tudo isso, presente ou futura, só o leitor, na sua consciência o poderá atestar.
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