(per)Seguidores

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Mais uma "pressão" sobre o Tribunal Constitucional...

Jorge Miranda
1. Uma das questões mais candentes que se estão suscitando em Portugal e noutros países vem a ser a das pensões de aposentação, por haver poderes públicos e correntes de opinião que pretendem diminuí-las ou tributa-las especificamente, em nome da necessidade de propiciar pensões no futuro aos que agora se encontram ativos.
A Constituição, como se sabe, incumbe o Estado de, sem prejuízo das instituições de solidariedade social, organizar, coordenar e subsidiar um sistema de Segurança Social e de proteger os cidadãos na velhice (art.º 63.º, n.ºs 2, 3 e 5) e declara o direito das pessoas idosas à segurança económica (art.º 72.º, n.º 1) (1) - direito esse que, segundo o acórdão n.º 576/96 do Tribunal Constitucional, de 16 de abril (2), tem por núcleo essencial o pagamento de pensões.
Mas, no acórdão n.º 187/2013, de 5 de abril (3), este tribunal não declarou inconstitucional o art.º 78.º da lei orçamental para 2013 (a Lei n.º 66 B/2012, de 31 de dezembro) que (conquanto com antecedentes em leis orçamentais anteriores) criou uma "contribuição extraordinária de solidariedade" imposta aos pensionistas sobre a totalidade do valor mensal a partir de 1.350 euros, segundo escalões sucessivos (n.º 1) e com taxas acumuladas no caso de pensões superiores a 3.500 euros (n.º 2).
2. Para a tese que fez vencimento, essa contribuição não seria um imposto (por ser uma receita consignada e sem caráter de completa unilateralidade). Seria, sim, uma contribuição para a Segurança Social, enquadrável no tertium genus das "demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas" (4) do art.º 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição. Não eram, portanto, para o caso mobilizáveis as regras do art.º 104.º, nº 1 relativas ao imposto sobre o rendimento pessoal (n.º 74).
Os pensionistas afetados pela medida não se encontravam na mesma situação de quaisquer outros cidadãos, justamente porque beneficiários de pensões de reforma ou de aposentação e de complementos de reforma, e era a sua distintiva situação estatutária que determinava a incidência daquela contribuição, como medida conjuntural, com a finalidade específica de assegurar a sua participação no financiamento do sistema de segurança social, num contexto extraordinário de exigências de financiamento que, de outra forma, sobrecarregariam o Orçamento do Estado ou se transfeririam para as gerações futuras (n.º 75).
Não podia deixar de se reconhecer que as pessoas na situação de reforma ou aposentação, tendo chegado ao termo da sua vida ativa e obtido o direito ao pagamento de uma pensão calculada de acordo com as quotizações que deduziram para o sistema de Segurança Social, tinham expetativas legítimas na continuidade do quadro legislativo e na manutenção da posição jurídica de que eram titulares, não lhes sendo sequer exigível que tivessem feito planos de vida alternativos em relação a um possível desenvolvimento da atuação dos poderes públicos suscetível de se repercutir na sua esfera jurídica.
Todavia, em face do condicionalismo existente, não só as expetativas de estabilidade na ordem jurídica surgiam mais atenuadas como eram sobretudo atendíveis relevantes razões de interesse público que justificavam, em ponderação, uma excecional e transitória descontinuidade do comportamento estadual (n.º 79); e estava respeitado o princípio da proporcionalidade (n.º 80).
Tão pouco se verificaria violação de direitos patrimoniais, pois o cálculo do montante da pensão não teria de corresponder à aplicação de um princípio de correspetividade que pudesse resultar da capitalização individual das contribuições; mas radicava, antes, num critério de repartição assente num princípio de solidariedade, princípio este que apontaria para a responsabilidade coletiva das pessoas entre si na realização das finalidades do sistema e se concretizaria, num dos seus vetores, pela transferência de recursos entre cidadãos (n.º 81).
Mesmo quanto aos complementos de reforma, que funcionam segundo um regime de capitalização, eles estariam associados ao sistema de Segurança Social na sua integralidade, e estando em causa a incidência de uma contribuição similar às quotizações dos trabalhadores no ativo, não se via em que termos é que esses rendimentos deviam encontrar-se cobertos pelo âmbito de proteção do direito de propriedade, quando ainda se estaria no domínio da parafiscalidade (n.º 82).
3. Votaram vencidos os juízes Pedro Machete, J. Cunha Barbosa, Catarina Sarmento e Castro, Maria José Rangel de Mesquita e Fernando Vaz Ventura. Em comum, os 5 juízes contestaram a natureza atribuída à "contribuição" e invocaram violação dos princípios de igualdade e de tutela da confiança. Não é possível aqui resumir essas declarações de voto.
4. Não custa acreditar que, por detrás da decisão de criar a "contribuição extraordinária de sustentabilidade", estiveram direta e imediatamente preocupações de índole financeira e apresentadas como conjunturais. Não deixaram, no entanto, também de estar presentes considerações sobre a solvabilidade do sistema de segurança social e olhares para o médio e o longo prazo.
Apesar disso, afiguram-se-me bem convincentes os argumentos aduzidos pelos juízes que votaram vencidos, desde logo quanto à natureza de imposto dessa espécie tributária, muito mais do que o discurso justificativo do acórdão. Até as razões do interesse público vindas dos órgãos do poder político e que o acórdão pareceu acolher o confirmavam.
E impressiona observar que são aqui sujeitos passivos os aposentados, com o peso da idade e, tantas vezes, de doença, a terem de o suportar, sem deixarem de ter de pagar o IRS - donde, violação do princípio da unicidade do imposto sobre o rendimento pessoal do art.º 104.º, n.º 1 - e quaisquer outros impostos, como o IVA. E também de princípio de proporcionalidade. A Segurança Social está concebida para ajudar, entre outros, os idosos e, afinal, estes ainda têm de continuar a ajudá-la.
Há, por outro lado, uma afronta ao princípio da proteção da confiança (5). As pessoas que trabalharam toda a vida têm as legítimas expetativas de receber agora as pensões tal como foram definidas na altura própria e para as quais efetuaram os descontos legalmente estabelecidos nos seus salários. De resto, essas pessoas, enquanto ativas, também pagaram impostos através dos quais contribuíram para o sistema e, desde logo, para as pensões das gerações que as precederam (6). E, em muitos casos, são pessoas que somente agora ou há muitos poucos anos acederam a um patamar de libertação da extrema necessidade económica, ambiental e cultural em que antes, elas e os seus ascendentes, viveram. Ou pessoas que, na solidariedade familiar que, apesar de tudo, subsiste no nosso país, apoiam os filhos desempregados.
É certo que alguns pensionistas não contribuíram, nas suas carreiras ou nas funções que desempenharam, com montantes equivalentes aos que agora pretendem receber. Mas isso apenas obrigaria o legislador a distinguir, em vez de aplicar cegamente o mesmo regime a esses e aos demais, com preterição da igualdade e da proporcionalidade. E pode tratar-se por igual quem esteve 45 anos na função pública (dos quais 3 de serviço militar obrigatório) até aos 70 anos e quem se aposentou ao fim de muito menos anos?
A responsabilidade entre gerações implica a consideração de uma cadeia de gerações (para empregar uma fórmula do grande constitucionalista alemão Peter Häberle), presentes, passadas e futuras; e implica um verdadeiro contrato, um contrato entre elas, avalizado pelo Estado e pelas instituições da sociedade civil. Fora desta consciência por todos assumida não faz sentido configurar qualquer tipo de responsabilidade ou apelar à sustentabilidade do sistema.
5. Reproduzindo uma frase paradigmática do próprio Tribunal Constitucional: "A Constituição não pode certamente ficar alheia à realidade económica e financeira e em especial à verificação de uma situação que se possa considerar como sendo de grave dificuldade. Mas ela possui uma específica autonomia normativa que impede que os objetivos económicos ou financeiros prevaleçam, sem quaisquer limites, sobre parâmetros como o da igualdade, que a Constituição defende e deve fazer cumprir" (7).
Resta esperar que, perante anúncios ameaçadores de mais cortes nas pensões, o Tribunal Constitucional venha a ser duplamente coerente: com esta afirmação e com o seu reconhecimento do caráter conjuntural da dita "contribuição extraordinária de solidariedade”.
O que está em causa não é este ou aquele artigo avulso da Constituição - por mais importantes que sejam o art.º 63.º ou o art.º 72.º. O que está em causa é um complexo de princípios do Estado de direito democrático, comuns ao Direito Constitucional de todos os Estados da União Europeia e património da civilização jurídica.
1) A Constituição portuguesa e outras, como a italiana, de 1947, impondo à República "remover os obstáculos de ordem económica e social que, limitando, de facto, a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os cidadãos na organização política e social do país" (art.º 3.º) e assegurando aos trabalhadores "o direito, em caso de velhice, a meios de previdência social adequados às suas exigências de vida" (art.º 38.º). Ou a Constituição espanhola, de 1978, adstringindo os poderes públicos a garantir, mediante pensões adequadas e periodicamente atualizadas, a suficiência económica dos cidadãos na terceira idade (art.º 50.º).
Recorde-se também a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, em cujo art.º 34.º, n.º 1 se lê "A União reconhece ou respeita o direito de acesso às prestações de Segurança Social e aos serviços sociais que concedem proteção em casos como a maternidade, a doença, os acidentes de trabalho, a dependência ou a velhice (…)”.
2) Diário da República, 2.ª série, de 19 de junho de 1996.
3) Ibidem, de 22 de abril de 2013.
4) O acórdão fala em "serviços públicos", o que não é bem o mesmo.
5) Cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, 5.ª ed., Coimbra, págs. 320 e segs., e autores citados.
6) Situação bem diferente é a das pensões de reforma, não contributivas, vindas das Leis n.ºs 26/84, de 31 de julho (art.º 8.º) e 4/85, de 9 de abril (art.ºs. 24.º e seguintes.), contrárias ao princípio da igualdade e ao princípio republicano de temporariedade dos cargos políticos (como escrevi no Manual …, IV, 1. ed., 1988, págs. 60-61). A Lei n.º 52 A/2005, de 10 de outubro, extinguiu-as, mas - em nome da proteção da confiança - não afetou as daqueles que já as estivessem recebendo. Só que, em tempo de crise, é de lamentar que nenhum dos beneficiários (algumas centenas) a elas não tenha até hoje renunciado por um elementar imperativo de solidariedade nacional.
7) Acórdão n.º 353/2012, de 5 de julho, in Diário da República, 1.ª série, de 20 de julho de 2012.
Professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa

Sem comentários:

Enviar um comentário