Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas, está preocupado com cortes nas funções do Estado, alerta para a pobreza envergonhada e a situação dos idosos e das crianças.
O presidente da Cáritas considera que tem faltado “mestria” aos governantes para ir buscar o dinheiro aos mais ricos em benefício do "bem comum” e deixar de recorrer sempre aos “pobres, que já não podem dar mais”.
Eugénio Fonseca comentou o corte nas funções do Estado proposto pelo Governo, questionando “se os 4.000 milhões de euros a cortar terão que ser mais uma vez no orçamento familiar” dos portugueses, que já viram “esse orçamento truncado de forma tão drástica nos dois últimos anos”.
“Afinal, as tais gorduras parecem que não estavam no aparelho do Estado, parece que estavam nas famílias portuguesas”, mas não na maior parte delas, comentou “estariam em muitas famílias que enriqueceram ilicitamente, porque este país nunca conseguiu em termos de desenvolvimento ficar na linha da frente dos 27 da União Europeia, mas conseguimos ir para a linha da frente na disparidade entre os mais ricos e os pobres”, criticou.
Portugal conseguiu produzir riqueza, mas não a soube repartir justamente. “Mais do que não sabê-la distribuir com justiça, ela agarrou-se às mãos de alguns que praticaram ilícitos para ficar na posse delas”. Por isso, “é escandaloso” que essa riqueza continue na posse dessas pessoas “sem ainda nada ter sido feito” para a devolução desse património, “que é de todos e continua a enriquecer alguns”. “Estamos a falar de investimentos que o Estado fez em sectores que foi só para beneficiar algumas partes da sociedade e não o todo, porque quando é para penalizar são sempre os mesmos”, criticou.
A crise, que “esfrangalhou a classe média”, deve “levar a exigir que regresse à política mais ética”.
“O que nos tem faltado tem sido a mestria de ir buscar o dinheiro a quem tem mais condições para poder pô-lo ao serviço do bem comum, mas estamos sempre a ir buscá-los aos pobres que já não podem dar mais”, disse, considerando que se as propostas do FMI para cortar na despesa do Estado avançarem “vão dar cabo do resto”.
Para o responsável, esta não será a melhor altura para fazer a reforma do Estado, porque “a capacidade de reflexão está mais debilitada” e “há uma certa tensão latente”. Na sua opinião, esta é a altura do país criar condições para o pagamento da dívida em prazos razoáveis, com a solidariedade da UE. O que Portugal e seus governantes têm de fazer, “e julgo que não têm conseguido, é manterem-se bem firmes junto dos seus parceiros europeus”.
“Não me alegro nada quando dizem” que Portugal tem sido “muito bom aluno” e “muito cumpridor”, porque os portugueses são “bons alunos, mas com muito sofrimento, com muitas lágrimas derramadas e muitos sonhos desfeitos”.
Lamentou que Portugal “tenha, neste momento, como único desígnio nacional a luta contra o défice e que se tivesse paralisado todas as potencialidades de investimento”. Considerou que tem falhado em Portugal uma bolsa de ideias para possibilidades de negócio para quem está desempregado e dificilmente regressará ao mercado de trabalho.
Desempregados que não recebem RSI
Eugénio Fonseca diz que há muitos desempregados que preferem pedir às instituições em vez de recorrer ao Rendimento Social de Inserção (RSI) devido ao estigma em torno da medida, que abrange mais de 280.000 pessoas. “Há muita gente que não quer aceder à medida porque se criou um estigma de tal forma que há pessoas que têm vergonha de dizer que são beneficiários do RSI."
Antes da crise, a taxa de pobreza em Portugal situava-se nos 17,9%, “mais de 20% deste total eram trabalhadores por conta de outrem, cujo rendimento não era suficiente para suportar os encargos necessários para a sua sobrevivência”. “Mesmo assim continuávamos a dizer que era gente que não queria trabalhar, que queria viver à custa dos outros e do erário público”, mas a situação de crise veio mostrar que “não é bem assim”.
Essa estigmatização também atingiu o RSI: “Como se percebeu que havia uma camada da população que não olhava bem para esta medida [devido a casos de fraude], terminadas classes políticas quiseram fazer do RSI uma arma política e no fim acabaram por, em nome do rigor que a medida devia ter, prejudicar aqueles que não falseavam o Estado”.
Violência contra idosos e crianças
O presidente da Cáritas defende que o Estado deve exercer uma “vigilância muito fina” para prevenir que nenhum idoso seja sujeito a maus-tratos pelos familiares que os retiram dos lares apenas para beneficiar dos seus "parcos rendimentos". “O problema dos idosos é gravíssimo”, afirmou.
Muitas famílias retiram os idosos dos lares. “Não está mal que os fossem buscar para tratar deles, porque o seu espaço natural é na família”. “Mas o que sabemos é que muitos vêm dos lares, até contra a sua própria vontade, e depois não são bem tratados, continuam a viver isolados, sem os cuidados que teriam no lar e os seus filhos aproveitam-se das suas reformas”, alertou.
Para Eugénio Fonseca, “é desumano” este comportamento dos filhos, mas “se o fazem é porque também alguém não os apoiou o suficiente”. “Eu não quero acusar essas famílias, embora devessem ter consciência de não ir pelo mais fácil, de ir buscar os idosos aos lares. Deviam era pressionar as autoridades oficiais a criarem as condições de vida para eles e não prejudicarem os seus mais velhos”.
Há outras situações que também afectam os idosos. Além de não haver respostas institucionais para todos os que necessitam, aumentou a insegurança. “Muitos deles estão a ser vítimas de logros e assaltos, vivem sozinhos, totalmente desprotegidos”, lamentou.
Também as crianças estão a ser vítimas da crise, registando-se um grande aumento da pobreza infantil em Portugal. “A pobreza nas crianças reflecte-se muito na rentabilidade escolar” e na sua convivência, porque deixam de frequentar os ATL e os jardins-de-infância.
Por outro lado, “não se pode admitir” que mães estejam a dar leite de vaca a bebés por falta de recursos e a existência de casos de crianças com fome nas escolas, uma situação que considera “um crime” de desrespeito dos direitos humanos.
Para o responsável, o Estado tem de ter “força diante da troika” para “exigir uma fatia maior para a acção social”.
“O Governo criou as cantinas sociais mas são em número reduzido para a multiplicidade das necessidades”. Sublinhou ainda que, “se não fossem os portugueses com a sua generosidade, o drama do país seria muito maior”. “Não sei se alguém morreu mesmo de fome em Portugal, mas se não tivesse sido a generosidade, através de muitas iniciativas de solidariedade (…), havia gente que morria de fome, porque quem tem estado a sustentar a satisfação das necessidades primárias das pessoas tem sido, até agora, a sociedade civil”.
Seguramente que este retrato do país feito pelo presidente da Cáritas, e que todos nós conhecemos dos nossos concelhos, não foi objeto de análise dos “técnicos” do FMI, mas também sabemos que se tivesse feito parte da base de dados que lhes foi fornecida, as conclusões seriam as mesmas, não por razões técnicas (qualquer técnico saberia resolver o problema), mas por razões ideológicas, embora o PM as tenha refutado, para logo de seguida (num ato falhado) as confirmar…
E perante este panorama social, só se pode perguntar: Se o governo de um Estado de Direito não sabe (ou não quer) cumprir com as suas obrigações básicas, serve para quê?
Se não sabe, que passe a bola a quem de direito…
Se não quer, que seja “julgado” por quem de direito…
Se quem de direito não sabe, que passe a bola ao povo…
Se quem de direito não quer, que se corresponsabilize…
Já não estamos apenas a ultrapassar os limites da capacidade de resistência dos cidadãos, estamos a deixar que se ultrapassem os limites da decência política e se desvirtue o conceito do serviço público, que é a política, com efeitos de desumanidade sem limites…
E há limites!
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