A herança cultural não escapa à cura de austeridade a que estão submetidos os países europeus, começando pelos do Sul. É aí que se concentra grande parte do património histórico – e dos cortes a que estão sujeitos – com efeitos desastrosos.
Também elas, as pedras, estão ameaçadas. Curiosamente, os berços da história e da arte ocidentais são hoje países feridos e meio despedaçados por essa sucessão de crise-cortes-crise. Na Grécia, Itália, Espanha e Portugal estão 122 locais declarados Património Mundial da Humanidade pela UNESCO (13% do total). Gloriosos passados de incertos futuros como o Coliseu romano?
Os males da bela Veneza
O anfiteatro de Vespasiano perde pedras e a sua fachada sul sofreu uma inclinação de 40 centímetros, para surpresa dos italianos e por causa do excesso de tráfego. Os bolsos públicos estão tão vazios que vai ser Diego Della Valle, empresário de sapatos, a pagar os 25 milhões necessários para restaurar o grande anfiteatro inaugurado pelo imperador Tito com 100 dias de festa. Também os achaques da bela Veneza recorreram a um médico particular: a Bulgari forrou a Ponte dos Suspiros com os seus anúncios para ajudar a sua reabilitação.
Itália é o país com mais locais protegidos pela UNESCO (tem 47) e um feroz exemplo de que a história nem sempre anda para a frente. Os 2.300 milhões de euros do orçamento da Cultura em 2001 encolheram para 1.400 milhões (2012). Por isso se desmoronam ruínas como Pompeia e outras menos famosas. Gian Antonio Stella e Sergio Rizzo, jornalistas do Corriere della Sera, referem vários exemplos do crepúsculo da arte no seu livro Vandali. L’Assalto alle bellezze d’Italia (Vândalos, o assalto às belezas de Itália. “As únicas riquezas que temos – a paisagem, os museus, as aldeias medievais – estão a ser agredidas. Exatamente o setor que podia ser o tesouro do país neste momento de crise”, lamenta Stella.
A Grécia, como um pé gangrenado
A Europa está a quebrar os vínculos clássicos dos quais emergiu. A Alemanha, tão entusiasta de gregos e latinos no século XIX, olha agora para a Grécia como o pé gangrenado que convém cortar. Os cortes que exige emagrecem carteiras públicas e privadas. Até junho passado, o orçamento do Ministério da Cultura grego tinha sofrido um corte de 35% e, para 2013 e 2014, preveem-se cortes adicionais. Menos meios para proteger e tratar.
Itália, Espanha, Grécia e Portugal possuem 13% do património mundial protegido. Talvez seja mais fácil repetir-se o que se passou a 5 de fevereiro último no Museu de Olímpia, onde um roubo à mão armada tornou patente o óbvio: cortar em pessoal e recursos pesa na fatura. Já em janeiro tinham sido roubados um Picasso e um Mondrian da Galeria Nacional de Atenas, vigiada por um único guarda.
“Os monumentos não têm voz, só nos têm a nós”, alertam os arqueólogos gregos tentando evitar o abandono do seu gigantesco património: 17 locais na lista da UNESCO, 210 museus e coleções de antiguidades, 250 sítios arqueológicos e mais de 19.000 monumentos históricos declarados.
E o que se passa em Espanha, glória do passado com periclitante futuro? No 2º país mais protegido pela UNESCO, com 44 locais, acontece algo paradoxal: vai conservar-se pior mas destruir-se-á menos. Víctor Fernández Salinas, professor de Geografia Humana da Universidade de Sevilha e secretário do comité espanhol do ICOMOS, organismo internacional não-governamental que assessora a UNESCO, sublinha o efeito benéfico da crise sobre o património. Acabou a festa da especulação e, com ela, as principais ameaças ao património espanhol. “Os maiores danos vinham de projetos urbanísticos como campos de golfe ou arranha-céus e deviam-se à especulação”, afirma.
Alemanha imune
No Sul, os torniquetes apertam até à asfixia, mas há outros modelos. França, que também não pode deitar foguetes, deu um corte limitado no orçamento para conservação do património. Em 2012 esse orçamento é de 380,7 milhões de euros, ou seja, 0,2% mais do que no exercício anterior. Novamente, a exceção francesa. Para além da inclinação de 43 centímetros do Big Ben, o English Heritage, o organismo governamental encarregue de tratar do património do Reino Unido, assinala 3.168 monumentos em perigo. Alguns deles requerem “intervenções significativas”.
Nesta Europa a várias velocidades, a Alemanha também está à vontade na cultura. A crise não afetou os orçamentos culturais que, segundo o instituto federal de estatística Destatis, que têm aumentado desde 2008. Há mais 6.000 museus subsidiados, 150 teatros e 130 orquestras, para além de 84 óperas (em 81 localidades). O democrata-cristão Bernd Naumann (CDU), comissário para a Cultura e Meios no 2º governo de Merkel disse, em maio, o que seria impensável ouvir noutro país: “Nestes tempos de desorientação seria um atrevimento cortar nos orçamentos culturais”. Na Alemanha “há mais gente nos museus do que nos estádios de futebol”.
O mapa europeu dos cortes na cultura
“A cultura sempre se mostrou vulnerável aos cortes na despesa – mas qual será a dimensão do efeito da austeridade nas artes?” é o começo de um texto de The Guardian, que lança – juntamente com os seus congéneres europeus La Stampa (Itália), El País (Espanha), Süddeutsche Zeitung (Alemanha), Gazeta Wyborcza (Polónia) e Le Monde (França) – um projeto europeu para traçar o mapa dos programas criativos que foram cortados devido à crise financeira. Um mapa interativo mostra a localização de iniciativas artísticas em dificuldades e os leitores vão ser convidados a enviar um email com dados sobre instituições ameaçadas.
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