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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O fisco vai-nos confiscar, dis-cri-mi-na-da-men-te!

De Eric Angeloch - Camelo a atravessar
o buraco da agulha graças ao dinheiro.
Se alguém tivesse dúvidas de que tributar um rico em Portugal é uma tarefa mais difícil do que fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha as últimas noticias relativas a sobretaxa de solidariedade social, com que o Governo tentou liquidar o debate sobre a imposição da riqueza, afastaram-nas definitivamente.
Confesso a incomodidade que senti quando, numa mesma semana, soube que Américo Amorim - o português mais rico, segundo todas as estimativas conhecidas - pagava 64 mil euros de IRS e não considerava adequado que lhe fosse exigido mais, enquanto o Governo propunha que aqueles que pagam mais IRS resultante do trabalho, subordinado ou independente, pagassem mais uma taxa de solidariedade social a que o comendador Amorim, em face do seu rendimento declarado, não estará sujeito.
A minha incomodidade só pôde, aliás, aumentar quando, na mesma semana, fui procurado por uma senhora de noventa anos, que recebe uma pensão de quinhentos euros por mês e a quem o fisco comunicava encontrar-se em situação irregular. Por lapso do filho, não entregara a declaração de IRS nos dois últimos anos, da qual nada constaria que não fosse do conhecimento da Administração Fiscal. A situação, como lhe comunicaram, já está regularizada, mas da sua reforma saíram cento e cinquenta euros: uma verdadeira sobretaxa de solidariedade social.
Considero sempre que os debates sobre a justiça fiscal são daqueles em que, mais facilmente, paixões e interesses pessoais se sobrepõem ou se escondem atrás de argumentos habilmente esgrimidos. Mas discutir a justiça fiscal é não só um direito mas, sobretudo, um dever de cidadania e, por isso, gostaria de explicar porque considero profundamente injusta a medida proposta e entendo apelar aos deputados - os nossos representantes eleitos - para que exerçam a plenitude dos seus poderes, que resultaram da luta históricas das populações contra a prepotência fiscal, enquanto espero que o Tribunal Constitucional reforce o conforto que sentimos por saber que existem instâncias de defesa dos cidadãos.
Num filme que muito aprecio - Filadélfia - o advogado, interpretado por Denzel Washington, pede sistematicamente às testemunhas que lhe dêem respostas que uma criança de 10 anos possa perceber. É nesses termos que vou tentar expor o meu ponto de vista.
Admitida a necessidade de funcionamento do Estado e a impossibilidade de o financiar pelos mecanismos de mercado, passou-se a entender que uma parcela da riqueza existente em cada sociedade deveria ser afecta à cobertura das despesas públicas.
Os impostos são, então, exigidos aos cidadãos como forma de organizar a sua comparticipação nas necessidades públicas. De sinal e arma de prepotência passaram, através de uma luta secular, para um instrumento de soberania por excelência em que, através dos nossos representantes, autorizamos a amputação do nosso património e rendimento, porque idêntico esforço é exigido a todos e não, como anteriormente, apenas ao Terceiro Estado.
A generalidade e a igualdade de todos perante a lei fiscal passaram a constituir uma referência fundamental do Estado de Direito. Naturalmente que as concepções de justiça, bem como a definição da melhor forma de atingir a riqueza sempre variaram, mas constituíram, pelo menos até às ultimas décadas, uma questão central de políticos, financeiros e filósofos.
A assunção pelo Estado de importantes funções na esfera social, de garantia de saúde, ensino e Segurança Social, fizeram com que muitos partilhassem a ideia do juiz Holmes, que não hesitou em proclamar que gostava de pagar impostos, porque com eles comprava civilização.
A instauração de modelos de tributação progressiva, em que quem mais tem mais paga, foi a tradução de um esforço importante para garantia da igualdade e corresponde àquilo a que Richard Musgrave designa por um mínimo de boas maneiras de qualquer sociedade civilizada, tendo gozado de uma significativa base de apoio.
Através deste processo avançou-se no sentido da criação de sociedades mais iguais e mais coesas. As populações com menores rendimentos conheceram uma rede de protecção sem precedentes e ricos e empreendedores puderam beneficiar de uma inestimável paz social.
A percepção das dificuldades sociais que a crise de 2007-2008 e a sua persistência iriam criar levaram a que, logo em 2008, numa entrevista a Elizabete Miranda, tivesse dito que seria bom que os ricos optassem por fazer um maior esforço fiscal. Apesar de toda a desatenção dos herdeiros da social-democracia, em vários países e em vários tons, alguns ricos e alguns muito ricos pediram para pagar mais impostos. Se os orienta um verdadeiro dever de solidariedade ou um cálculo custo-benefício é questão que aqui não se aprofunda. Certo é que as sociedades em que se integram são hoje muito menos igualitárias do que décadas atrás e, ao que tudo indica, muito mais incapazes de responder à crise. Certo é, também, que formas desbragadas de populismo ameaçam o seu estatuto e tornam a vida em sociedade menos harmoniosa.
Ora, se é verdade que, formalmente, as propostas apresentadas se orientam no sentido da progressividade, tal sucede apenas no domínio da fiscalidade sobre o rendimento do trabalho e essa não pode ser a medida para aferir da progressividade.
Quaisquer que sejam os argumentos ou as desculpas esgrimidas, um sistema que deixe de fora os mais ricos ou apenas os atinja de forma marginal, é um sistema fortemente regressivo, em contradição clara com a Constituição Portuguesa.
O problema não é novo, nem foi criado por este Governo, já que na própria reforma de 1988 se encontram os germes desta discriminação contra os rendimentos de trabalho. Porém, parecem ter sido atingidos todos os limites do razoável. Quando se pede a quem trabalha e vive apenas do seu trabalho que entregue ao Estado cerca de 50% do seu rendimento a título de IRS e mais 10% a título de segurança social, exigindo-lhe, ainda, impostos sobre o património e, claro está, todos os impostos indirectos, também eles em ritmo de subida acelerada, entra-se definitivamente em medidas de confisco e, como tal, inaceitáveis.
A questão óbvia é, então, se o esforço não poderia ser partilhado de outra forma. A proposta de Miguel Cadilhe de criação de um imposto, aplicado apenas de uma vez, mas incidindo sobre todo o património, constitui um serviço ao País do maior relevo, da iniciativa de um dos melhores ministros das finanças da Democracia.
Não ignora Miguel Cadilhe, nem qualquer pessoa que apoie esta sugestão, que se trata de uma proposta de difícil concretização, mas é para isso que servem - é para isso que têm que servir os governos e a Administração Pública. Com toda a justeza, Medeiros Ferreira, no seu excelente blogue, falava da preguiça da administração fiscal, que preferiu ir aos contribuintes já registados a procurar outros, muitos dos quais bem poderiam pagar mais.
Não creio que este governo tenha sido eleito na expectativa de que procurasse soluções fáceis e rotineiras, mas antes na convicção de que, no estado agónico do país, teria o rasgo de identificar e aplicar soluções inovadoras. Estas, definitivamente, não são novas mas, o que é bem pior, não são mesmo nada boas.
Como cidadão e como alguém que tem por missão ensinar finanças públicas, achei meu dever dar testemunho público. De quantos - Governo, Assembleia, Tribunal Constitucional - detêm poderes da matéria, porque representantes dos contribuintes no seu conjunto, espero que o exerçam com sensibilidade e bom senso.
Eduardo Paz Ferreira - Professor catedrático de Finanças Públicas

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