Este
surto de raiva, com laivos claramente censórios, não me surpreende. Estava à
espera dele.
É
difícil imaginar tanta raiva, tanta vontade de calar, tanto desejo de pura
exterminação do outro, como aquele que se abateu sobre o manifesto dos 70
signatários a pretexto da reestruturação da dívida, uma posição expressa em
termos prudentes e moderados por um vasto grupo de pessoas qualificadas, quase
todas também prudentes e moderadas.
Nem
isso poupou os seus signatários a uma série de insultos, acusações ad hominem, insinuações e o que mais
adiante se verá. Sobre eles caiu a excomunhão que retira os seus nomes do
círculo de ferro da confiança do poder.
Pelo
contrário, alguns dos que os atacam ganharam o direito de lá entrar, e os que
já estão lá dentro viram reforçada a confiança que lhes permite uma vida
almofadada dos custos da crise. São os “responsáveis”, discordam às vezes no
secundário, mas portam-se bem. Os 70, pelo contrário, portaram-se muito mal.
Num mundo cada vez mais dos “nossos” e dos “deles”, bastante parecido com o
paradigma marxista da luta de classes, os signatários cometeram vários pecados
mortais, e ficaram do “lado errado”. É com eles que estou e é com eles que
quero estar, não tendo assinado o manifesto apenas por incúria minha em
responder a tempo ao convite que me foi feito. Mas é como se o tivesse
assinado, por isso incluam-me na lista dos insultos, que já estou habituado.
Veio
ao de cima tudo, a começar pelo primeiro-ministro, que os tratou de essa
“gente”, ou porque tinham uma “agenda política” ou porque eram “cépticos” por
natureza, inúteis para o glorioso esforço nacional de empobrecer como programa
de vida. O manifesto era “antipatriótico”, com um timing inaceitável, a 2 meses da “libertação” de 1640, feito pelos
“culpados” do esbanjamento, pelos “velhos” a defenderem os seus privilégios,
pelos defensores do status quo dos
interesses instalados, pelos “jarretas”, pela “geração errada”. O seu objectivo
escondido, ao assinarem o manifesto, é outro, é “manter o modelo de negócio que temos, o Estado que temos, e atirar a
dívida para trás das costas”, escreve António Costa em editorial do Diário
Económico. José Gomes Ferreira é mais claro: “Estará a vossa iniciativa relacionada com alguns cortes nas vossas
generosas pensões?”
Os
argumentos ad hominem abundam.
Alguns dos signatários que são de direita, um bom exemplo é Adriano Moreira,
passaram a ter que ser de esquerda, o que é um modo muito interessante de lhes
recusar a identidade, esvaziá-los do que foram toda a vida, para substituir
essa identidade por aquilo que é, na sua pena, um anátema: “Já cá faltava um manifesto, de espectro partidário amplo, mas com uma
ideologia única, de Esquerda”, diz, de novo, um editorial de António Costa
no Diário Económico.
Cada
vez mais se generaliza em Portugal a idade como insulto, diminuição, culpa, e
todos são “velhos” por associação. Falta-lhes a desenvoltura dos “jovens”. José
Gomes Ferreira pergunta: “Que tal
deixarem para a geração seguinte a tarefa de resolver os problemas gravíssimos
que vocês lhes deixaram? É que as vossas propostas já não resolvem, só agravam
os problemas. Que tal darem lugar aos mais novos?” De facto, troquem
Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Vítor Martins, Sevinate Pinto, o
presidente da CIP, Capucho, Sampaio da Nóvoa, Braga da Cruz, Gomes Canotilho,
Manuel Porto, Teresa Beleza, e tantos outros, pelos “mais novos”, Relvas,
Arnault, Marco António, Passos, pelos yuppies das
consultoras financeiras que antes vendiam os swaps, e agora iam negociá-los para o Governo, pelos jovens lobos
dos escritórios de advogados que fazem todos os negócios do Estado e
vice-versa, sob a batuta de alguns velhos “que estão lá sempre”, pelo jovem que
era para ser propagandista do Impulso Jovem, pelos gestores desempoeirados que
usam o Twitter todas as horas e que circulam de cargos políticos para a Caixa,
para a RTP, para Angola, dos ministérios para as empresas do PSI-20, ou aqueles
que os chineses empregam para manter um link,
útil, mesmo que caro. Manuela Ferreira Leite é “velha”, Catroga é novo. “Que tal darem lugar aos mais novos?”
Nos
comentários dos blogues pró-governamentais, ou seja, no fim da cadeia
alimentar, espuma-se de ódio junto com erros de ortografia, alguns dos quais eu
corrijo para se perceber, outros ficaram: “Este
tipo de "notáveis" (…) sinceramente mentem nojo. Concordo em pleno
com o nosso primeiro-ministro com o facto de hoje em dia já nem sequer consegue
responder a este tipo de escumalha que hoje em dia aparece na comunicação
social, parlamento em fim....por todo lado”; “foi uma ideia idiota que passou pela cabeça de alguns”; “infelizmente estamos já habituados a que
figuras da direita se mudem para a ideologia da esquerda irresponsável vá-se lá
saber a troco de quê, ou talvez fácilmente se saiba...(…) São gente golpista,
que facilmente vende a alma e a dignidade.” E estes são alguns
comentários reproduzíveis, a maioria é puro insulto soez.
A
imprensa económica teve nesta fronda contra o manifesto um papel central,
enfileirou editoriais furiosos e notícias com títulos críticos sobre como o
manifesto de nada valia e como felizmente ninguém ouvia estes “irresponsáveis”,
repetindo os argumentos do antipatriotismo, do “timing errado” que sairia
“caro” ao país, caso alguém “ligasse” ao manifesto, que deitaria abaixo o adquirido
pelos “sacrifícios” dos portugueses, como disse o primeiro-ministro e eles
glosam. José Gomes Ferreira vai mais longe – se as coisas correrem mal, a culpa
é vossa: “Mesmo sendo uma proposta feita
por cidadãos livres e independentes, pela sua projecção social poderá ter
impacto externo e levar a uma degradação da percepção dos investidores, pela
qual vos devemos responsabilizar desde já. Se isso acontecer, digo-vos que como
cidadão contribuinte vou exigir publicamente que reparem o dano causado ao Estado.” A
mensagem essencial é “saiam da frente”, a mesma que está na capa e no título de
um livro de Camilo Lourenço, que achava bem que houvesse um novo resgate porque
isso “disciplinaria” os preguiçosos dos portugueses.
O
que é que tocou esta corda hipersensível de governantes, jornalistas da
imprensa económica, homens da banca, alguns empresários e os seus agentes na
ideologia “orgânica” do “ajustamento”? Primeiro, voltar ao bom senso e deixar
os revolucionarismos de “mudar Portugal”, mostrar que há uma política
alternativa, que pode ser difícil, mas é muito mais realista do que a política
actual, ou seja, que há alternativas. E, pelo caminho, revelar a grande
hipocrisia em que assenta a política governamental, e em nome da qual os
portugueses têm vindo a ter a vida estragada: é que para se pagar a dívida, tem
que haver folga para o crescimento económico e qualquer outra solução é pura e
simplesmente irrealista. A questão é que daqui a uns anos, quando tudo isto
desabar, nenhum destes corifeus políticos dos “mercados” vai estar por cá, mas
a sua herança estará.
Segundo,
que essa alternativa implica uma nova forma de estar na Europa, ou seja,
responsabiliza-nos pela acção e não pela submissão. É como num velho ditado
gaullista sobre os comunistas: “Só fazem
aquilo que lhes permitimos que façam”. E como nós permitimos tudo, fazem
tudo. Na Europa é-se mais realista, incluindo nos “mercados”, do que se pensa e
seja porque nós actuamos, ou seja a reboque do que pode acontecer na França,
Itália ou Espanha, a política vai mudar. Só que, quando mais tarde Portugal o
reclamar como membro de parte inteira da União, mais estragado estará o país,
maior será o preço.
Terceiro,
o manifesto revela que o único consenso transversal existente hoje na vida
pública portuguesa, é exactamente aquele que põe em causa a actual política do
Governo e dos seus apoiantes. O outro “consenso” assenta num rotativismo entre
PS e PSD, obrigados a um pacto que impõe uma política “única” e a aceitação e
institucionalização de um colaboracionismo face a uma Europa que pode aceitar
“manter-nos”, mas com rédea curta e disciplinados. É apenas a blindagem da
actual política em eleições, para que, quer se vote no PSD ou no PS, tudo
continue na mesma. Esse seria um enorme risco para a democracia.
Este
surto de raiva, com laivos claramente censórios, não me surpreende. Estava à
espera dele, na sua magnitude e violência. E não vai acabar, vai-se tornar
endémico. Ele é o efeito a curto prazo de uma política que se assume para 20 ou
30 anos de empobrecimento, centrados num único eixo: pagar aos credores,
obedecer aos mercados. Essa política não pode ser conduzida em democracia, só
pode existir com base num regime autoritário.
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