Entrevista (1/2)
Finanças degradadas, sociedades desestabilizadas, projeto comunitário enfraquecido: o mal-estar que afeta a UE há vários anos é multifacetado. Agora que, no regresso das férias, decisões importantes esperam os dirigentes e os cidadãos europeus, "Der Spiegel" perguntou ao intelectual francês que hipóteses têm de encontrar novo elã. Eis a primeira de duas partes da conversa.
André Glucksmann, à luz das experiências intelectuais e existenciais que teve no século XX, como pensador antitotalitário, está preocupado com o futuro da Europa?
Nunca acreditei que os perigos fossem todos evitados após o fim do fascismo e do comunismo. A história não chegou a um impasse. A Europa não fez um interregno, quando a Cortina de Ferro desapareceu, ainda que por vezes parecesse querer fazê-lo. As democracias tendem a ignorar ou esquecer as dimensões trágicas da história. Nesse sentido, diria que sim, a situação atual é extremamente inquietante.
Desde o início, há 60 anos, a Comunidade Europeia tem andado quase sempre a tropeçar de crise em crise. As recaídas fazem parte do seu funcionamento normal.
A era moderna europeia é caracterizada por um sentimento de crise. Daí, pode tirar-se a conclusão geral de que a Europa não é realmente um Estado ou uma comunidade, no sentido nacional, que cresce em conjunto organicamente. Também não pode ser comparada com as antigas cidades-Estado gregas, que, apesar das diferenças e rivalidades, formavam uma única unidade cultural.
Os países europeus também estão vinculados por aspetos culturais partilhados. Existe algo a que se possa chamar espírito europeu?
As nações europeias não são iguais e é por isso que não podem ser misturadas. O que as une não é uma comunidade, mas um modelo de sociedade. Há uma civilização europeia e uma forma ocidental de pensar.
Quais as suas características?
Dos gregos – de Sócrates a Platão e a Aristóteles –, a filosofia ocidental herdou dois princípios fundamentais: o homem não é a medida de todas as coisas; e não é imune ao fracasso e ao mal. No entanto, é responsável por si mesmo e por tudo o que faz ou evita fazer. A aventura da Humanidade é uma criação humana ininterrupta. Deus não participa nela.
Falibilidade e liberdade. Mas esses aspetos fundamentais da história intelectual europeia bastam para criar uma união política permanente?
A Europa nunca foi uma entidade nacional, nem mesmo na Idade Média cristã. A cristandade permaneceu sempre dividida – a romana, a grega e depois a protestante. Um Estado federal europeu ou uma confederação europeia é um objetivo distante, congelado na abstração do termo. Considero que persegui-lo é um objetivo errado.
Estará a União Europeia a correr atrás de uma utopia, tanto em termos políticos como históricos?
Os fundadores da UE gostavam de invocar o mito carolíngio, e até deram a um prémio da UE o nome de Carlos Magno. Mas, na verdade, os netos dele acabaram por dividir o império. A Europa é uma unidade na divisão ou uma divisão na unidade. Porém, independentemente da maneira como se encare, não é, claramente, uma comunidade em termos de religião, língua ou moral.
E no entanto, subsiste. O que o leva isso a concluir?
A crise da União Europeia é um sintoma da sua civilização. Não se define com base numa identidade própria, mas na sua alteridade. A civilização não é necessariamente baseada num desejo comum de alcançar o melhor, mas antes na exclusão do mal e em torná-lo tabu. Em termos históricos, a União Europeia é uma reação defensiva ao horror.
Uma entidade definida negativamente, que surgiu da experiência de duas guerras mundiais?
Na Idade Média, os fiéis rezavam e cantavam nas suas ladainhas: "Senhor, protege-nos da fome, da peste e da guerra." O que significa que a comunidade não existe para o bem, mas contra o mal.
Nos dias de hoje, muitas pessoas enunciam a frase “nova guerra nunca mais”, como razão de ser para a Europa. Este fundamento ainda se mantém, agora que o espectro da guerra na Europa se dissipou?
A guerra dos Balcãs, na ex-Jugoslávia, e as ações homicidas incendiárias dos russos no Cáucaso não ocorreram assim há tanto tempo. A União Europeia reuniu-se para se opor a 3 males:
a memória de Hitler, o Holocausto, o nacionalismo extremo e o racismo;
o comunismo soviético durante a Guerra Fria;
e, por último, o colonialismo, que alguns países da comunidade europeia tiveram de abandonar de forma dolorosa.
Estes três males deram origem a um entendimento comum de democracia, um tema civilizador central da Europa.
O que falta, hoje em dia, é um desafio novo e unificador?
Não seria difícil de encontrar, se a Europa não agisse de forma tão imprudente. No início da década de 1950, o núcleo da união foi a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), a primeira aliança económica supranacional na área da indústria pesada; a Lorena e a região do Ruhr; a CECA como um meio de evitar a guerra. Como todos sabem, o equivalente seria hoje uma união energética europeia. Em vez disso, a Alemanha decidiu embarcar sozinha numa transição para uma nova energia, ignorando a dimensão europeia. Cada um negoceia individualmente petróleo e gás com a Rússia; a Alemanha assinou um acordo para a construção do gasoduto do Mar Báltico, apesar da resistência da Polónia e da Ucrânia; e a Itália está envolvida no gasoduto South Stream, que atravessa o Mar Negro.
“UE”: A visão de um intelectual contra os intelectuais Entrevista (2/2)
“UE”: A visão de um intelectual contra os intelectuais Entrevista (2/2)
André Glucksmann - de Mao à NATO
André Glucksmann é um filósofo e ensaísta francês. Nascido em 1937, começou por ser militante em grupos maoístas, na sequência dos acontecimentos de maio de 1968. Em 1975, escreveu “A cozinheira e o devorador de homens” [Edições Afrontamento] e, em 1977, “Os mestres pensadores” [Publicações Dom Quixote], em que denunciava o totalitarismo soviético e os seus apoiantes no Ocidente. Com Bernard-Henri Lévy, foi um dos líderes do movimento dos "novos filósofos", jovens intelectuais franceses que punham em causa as relações da esquerda com o comunismo.
Depois de levar a cabo uma campanha de apoio aos “boat-people” vietnamitas [levas de foragidos em barcaças devido, na segunda metade dos anos 1970, à perseguição vietnamita por colaboracionismo com o governo de Saigão e os norte-americanos durante a guerra do Vietname, e, na década de 1980,às grandes dificuldades económicas e alimentares que se faziam sentir no país], em nome da “defesa dos direitos humanos”, defendeu sucessivamente a NATO, a Guerra do Golfo, uma intervenção na Bósnia-Herzegovina, os ataques da NATO contra a Sérvia e a invasão do Iraque.
O seu encarniçamento contra Vladimir Putin e a favor dos separatistas chechenos levou-o a apoiar Nicolas Sarkozy na eleição presidencial francesa de 2007. Posteriormente lamentou publicamente esta decisão, argumentando que a França continuava demasiado indulgente para com a Rússia. Com o filho Raphael, escreveu “O maio de 68 explicado a Nicolas Sarkozy” [Editora Guerra & Paz]. Publicou diversos outros livros, de que está traduzido em português “O discurso do ódio” [Difel – Brasil]. O mais recente, de 2011, é “République, la pantoufle et les petits lapins” [apresentado como “reflexões pré-eleitorais de um apóstata”].
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