(per)Seguidores

sábado, 8 de setembro de 2012

Fernando Pessoa já dizia num slogan para a Coca Cola: “Primeiro estranha-se e depois entranha-se”

A vida é cheia de reações. Há momentos que nos fazem sentir e outros que nos fazem pensar; ora somos extrovertidos, ora introvertidos; às vezes agimos para fora, às vezes agimos para dentro. Há momentos em que precisamos ser ativos, outros em que precisamos ser absolutamente passivos. Porém, na maior parte do tempo, somos simultaneamente um e outro, ativos e passivos, como numa sala de aula, como num diálogo por exemplo, no trabalho, enfim, na vida...
Imagino a vida como um grande novelo de linha que se desenrola pouco a pouco nas mãos da avozinha que incansavelmente faz e refaz as suas casas no pano de linho. No fim, como que tomada de ímpeto, a avozinha depara-se com uma belíssima imagem, antes não vista, mas imaginada na sua memória. Só que, do início no fim, o novelo guarda múltiplas experiências até concretizar a tão sonhada imagem. O novelo desfia-se para se fiar na existência.
A existência prega-nos muitas partidas. Umas de estranhamento, outras de entranhamento. O estranhar uma realidade é inquietar-se com ela. Estranhar uma viagem que nos levará para um lugar desconhecido. Estranhar uma escola nova. Estranhar um novo membro da família que chega de imediato. Estranhar uma mudança de domicílio. Estranhar está muito ligado ao “páthos” em Aristóteles, uma espécie de afeção da alma, tem a ver com os sentimentos que nos provocam uma determinada experiência de vida. Ao entrarmos em contacto com algo novo, com um facto inusitado, temos a impressão de que alguma coisa estranha mexe connosco. Esta coisa estranha é a reação da nossa mais fina natureza.
O estranhamento está muito presente no exercício do filosofar, tanto em Aristóteles como em Platão. “A admiração, o estranhamento é o modo de ver daquele para quem o filosofar é um modo de viver. Os gregos denominaram thaumátzein esta atitude originante do filosofar” (Cf. Aristóteles, Metafísica A,2,17-19. Platão: Teeteto, 155d). Realmente, a gente só pergunta porque estranha!
Se somos acometidos constantemente pela experiência do estranhar, uma vez que alguma mudança está a ocorrer, o que dizer então da experiência do entranhar. Entranhar está para Sócrates como Sócrates está para a Filosofia. Esta palavra faz-me lembrar Fenarete, a mãe de Sócrates, parteira ou tratadeira das mulheres gestantes, prontas para dar a luz. Imagino Fenarete saindo pelas ruelas da Grécia antiga, de casa em casa, a cuidar de muitas mulheres que engravidavam e ansiosas esperavam os seus filhos. Sócrates, certamente muito pequeno seguia-a por essas ruas estreitas da Grécia a fim de acompanhar zelosamente o trabalho da mãe. Imaginem o pequenino menino filósofo ali, à sombra da mãe, a ver o ofício das mãos afinadas com a enfermagem. Sem saber ao certo, Sócrates já estava antecipando os traços visíveis da sua mais nobre filosofia, a arte de fazer o parto de almas e não de corpos. Com a mãe, parteira de corpos, viu maravilhado, entranhando, a maneira com que ela habilmente ajudava as suas pacientes a dar a vida.
Talvez, a partir dessa experiência de Sócrates com a sua mãe, o filósofo tenha adquirido os dois principais métodos da sua filosofia, o “elénkos” e a “maiêutica”. O primeiro é pura refutação, o segundo é o nascimento da verdade pelo diálogo. Principalmente, na linha do segundo é que se encontra o entranhamento da Filosofia. Argumento demasiadamente os elementos da justiça, que tenho a possibilidade de me tornar justo. Argumento frequentemente as categorias da bondade, que me torno bom. Falo por demais sobre Deus, que me torno um religioso ou cristão ao falar muito de Cristo. Falo tanto de Filosofia que, com isso, passo a tornar-me um filósofo. Entende-se assim a maneira de se entranhar do filósofo Sócrates, de modo que seus pensamentos chegam ao coração, promovendo nos seus interlocutores uma forma de impregnar as suas convicções. Os seus ouvintes ficavam tão imbuídos com as suas ideias que, de pronto, assumiam as suas convicções devido ao poder das suas argumentações. Entranhar é embrenhar-se nisso. Estar profundamente penetrado ou impregnado das suas ideias e convicções.
Estou aqui a viajar um pouco nas minhas ideias filosóficas para atribuir a Sócrates, talvez, as duas maneiras de se sentir afetado pelas suas ideias. Quando Sócrates interrompia um juiz e o perguntava sobre justiça é porque aquilo o estava estranhando, perturbando-o, de alguma maneira. Como é que um homem que se diz juiz não sabe nada de justiça!? Por outra, o entranhamento acontecia quando, o tal indivíduo se convencia da sua ignorância e aceitava aprender para encontrar, de facto, a verdade. Perguntar-se é estranhar. Convencer-se em buscar a verdade é o entranhar. Estar convicto da verdade é, sim, a meu ver, uma espécie de entranhamento.
Acho que nos entranhamos mais do que nos estranhamos. Devia ser o contrário. Somos mais políticos do que filósofos na prática. Os políticos gostam mais de acordos, os filósofos não. Percebo que o filósofo se lança mais a favor do estranhar. Parece próprio do pensamento estranhar, independentemente das certezas que advenham dele. O pensar é autónomo e não se prende ao entranhar, à verdade. É melhor, a meu ver, desentranhar do que entranhar para o filósofo. Porém, tratando-se de pessoas comuns, as duas formas de atitudes frente à vida são muito pertinentes e merecem toda a nossa atenção. Para alguns, as certezas (entranhamento) trazem paz e tranquilidade à alma. Para outros, as dúvidas (estranhamento) lançam-nos em direção à inquietação, o que também alimenta uma alma curiosa, sábia.
Todavia, estranhamento e entranhamento, como em Sócrates, parecem admiravelmente completarem-se de modo estranho a favor do filosofar...
Jackislandy Meira de M. Silva, Licenciado em Filosofia pela UERN e Especialista em Metafísica pela UFRN

Sem comentários:

Enviar um comentário