Concebida para pôr fim a meio milénio de conflitos, a união política europeia enfrenta um futuro incerto. Isto deve-se ao facto de os europeus terem deixado de partilhar uma visão e de os Estados Unidos não aceitarem a existência do euro, afirma o filósofo português Eduardo Lourenço.
Há meio século que os vencidos da II Guerra Mundial tentam levar a cabo uma empresa política inédita que é fazer da Europa uma entidade económica, política e cultural análoga à "nação" que nunca foi até aos dias de hoje. Foi em desespero de causa, e após dois episódios suicidários do seu destino durante o século XX, que três dos seus actores e responsáveis sonharam com uma Europa nova.
Esse "suicídio" europeu já era como uma síntese de meio milénio de disputa hegemónica sem quartel entre a Espanha, a França, a Inglaterra, a Holanda, a que se associarão, tardiamente, a Áustria, a Prússia e a Rússia. Ocasionalmente, a Suécia, então um país marginal, e Portugal participaram como aliados de um desses actores hegemónicos. Não é caluniar o nosso passado europeu assimilando-o a uma intermitente "guerra civil", se pensarmos que todas essas nações partilham uma certa cultura comum, herdada da Antiguidade e de referência cristã (católica, protestante, ortodoxa), desde a queda de Constantinopla, confrontada com outro tipo de cultura e referência religiosa.
Não espanta que com uma tão complexa herança, a chamada Europa ocidental, empenhando-se, pela primeira vez a sério e democraticamente, numa construção europeia de âmbito internacional, tenha encontrado tantas dificuldades em levar avante a sua utopia europeizante. Aliás, e mau grado a urgência do projecto europeu, as nações nele envolvidas só o puderam conceber e levar a cabo com algum sucesso no contexto de uma guerra fria cujos actores, Estados Unidos e União Soviética, pretendiam conquistar a hegemonia mundial e de que a Europa é (ainda nessa época) o espaço privilegiado de dupla e oposta cobiça.
Antes do fim dessa guerra fria, a Europa é, na verdade, uma Europa de dupla face. A queda do Muro de Berlim altera radicalmente esta situação de uma Europa duplamente partilhada entre os Estados Unidos e a Rússia. À parte como potência organicamente ligada aos Estados Unidos (e quase vice-versa) fica a Inglaterra. Ambos geram e continuam a gerir, mais do que nunca, e mau grado a aparência hegemónica da Alemanha (de novo reunida), a nova Europa em construção, convicta de ter dado um passo de gigante nessa construção, outorgando-se (sempre sem a Inglaterra) uma moeda europeia de importância internacional.
Pode, hoje sobretudo, pensar-se que a criação do euro foi a gota de ouro que fez estremecer o santo dos santos, a moeda fetiche do dólar, a única moeda imperial do espaço da chamada globalização. Quer dizer, da americanização política, económica, financeira, tecnológica e, mais do que se pensa, cultural do mundo. Talvez não seja apenas duvidosa ciência-ficção imaginar que a instituição do euro, a sua afirmação, o seu sucesso (excessivo?) nunca mais deixaram de preocupar o sistema monetário mundial, o que tem no dólar e na sua absoluta supremacia a sua arma absoluta, aquela que permite comprar a não menos incontornável arma do petróleo e controlar o mercado mundial.
Também não é necessário recorrer às muitas versões de um complot ideológico-financeiro de complexas ramificações para explicar a quase universal crise instalada no coração mesmo do capitalismo da era informática para ter por mistério o desencadear de uma ofensiva para desestabilizar o euro e através dele todo o projecto de autonomização política da nova Europa de maneira a assegurar a sua domesticação histórica definitiva. O que a Nato é no campo estratégico tradicional, é, na ordem económica e financeira, a fragilização do euro, que simboliza e encarna a Europa pós-queda do muro de Berlim. E se possível a sua desaparição. Mas quem na Europa quer a Europa?
Não precisamos que ninguém nos salve
Paradoxalmente, a mais europeísta das grandes nações – apesar das suas limitações ético-políticas - é mesmo a Alemanha. A antiga "nação do marco" é hoje o novo FMI do euro. Só ela dispõe ainda de um poder económico – apesar ou talvez por estar desarmada – para dar a uma "utopia" europeizante um rosto que possa levá-la a enterrar os fantasmas tenebrosos que um dia a arrastaram para o abismo. Só ela dispõe ainda de seduções históricas paradoxais para lhe assegurar a centralidade política que o destino lhe atribuiu ou ela construiu.
Quem pode construtivamente, por mais fantasmas terríficos que a hipótese desenterre, trazer as "europeias" Ucrânia e a grande Rússia para o espaço europeu que a História lhe concedeu? E mesmo a Turquia, com que a Alemanha tem mais familiaridade que ninguém?
O que seria lógico e conforme a uma das tradições e estatutos europeus mais relevantes é que fosse da pátria de Voltaire e não de Lutero que esperássemos ainda um empenhamento histórico a favor de uma Europa não menos exemplar, na medida em que o foi, outrora, em tantos domínios. Talvez por ser, sozinha e há tantos séculos, "Europa" no que ela era como "nação" de referência para tantas outras, em rivalidade com a Inglaterra, ilha-mundo, a França recuou desde o início diante da sua própria transcensão e versão dinâmica europeias. Assim, filhas históricas da rivalidade incontornável das suas histórias e culturas, nem a Inglaterra nem a França sentem necessidade da Europa. Já o são de sobra.
Quem sonha com a Europa é a pequena ou a marginal – e marginalizada – Europa do Sul e de Leste. A nórdica é como se pertencesse a um continente de sonhos gelados há muito. A bem considerar não há ninguém para quem a Europa – a antiga e a de hoje – seja uma espécie de América. A não ser aqueles que próximos no espaço fizeram dela em tempos – e agora por fascínio e vantagens de toda a ordem – a América que eles não são nem parecem poder sê-lo por enquanto.
Talvez tenha sido um sonho mal sonhado desejar uma Europa "unida" tão outra daquilo que durante séculos foi e maravilhosamente o é ainda: uma coexistência de "nações" vizinhas e inimigas umas das outras, mas ricas da sua diferença. Na verdade, no fim da II Guerra Mundial com a vitória absoluta dos Estados Unidos, os europeus, sobretudo os realmente vencidos, quiseram ser ou ver uns Estados Unidos da Europa, o ideal europeu por excelência. Era a ideia de Churchill com a Inglaterra de fora e de cima ou em toda a parte. Mas desde a origem, os históricos Estados Unidos foram, sabendo-o ou não, uma anti-Europa. Ou antes uma não-Europa. E, neste momento, uma super-Europa. Que olha agora para a única e impotente Europa como a Inglaterra olhava os "americanos" antes de o serem.
Se calhar a Europa não precisava – nem precisa - de ir para lado nenhum, nem ter um outro estatuto histórico, político e ideológico e pleonasticamente cultural mais adequado do que o da sua multíplice realidade que foi sempre o seu. Aqui se forjou o mundo moderno. E a modernidade do mundo.
Lembremo-nos disso. Não precisamos que ninguém nos salve. Precisamos de nos salvar nós mesmos. Já não é pouco. Não estamos à venda.
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