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domingo, 29 de julho de 2012

E por isso: “Em casa em que não há pão…”

“O 'espírito' assemelha-se mais que tudo a um estômago” (Nietzsche, Além do bem e do mal).
Nietzsche é visceral. É visceral na política, na educação, na arte, na ciência, na religião e, sobretudo, na filosofia. Esta impressão marcante de Nietzsche veio-me ligeiramente agora porque sinto que a filosofia não pode abrir mão de um pensar tão significativo quanto este presente no Prefácio da Genealogia da Moral: “É verdade que, para praticar a leitura de uma 'arte', é necessário, antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje muito esquecida (por isso há de passar muito tempo antes de os meus escritos serem 'legíveis'), uma faculdade que exige qualidades bovinas e não as de um homem moderno, ou seja, a ruminação” (NIETZSCHE, A genealogia da moral. 2ª ed. São Paulo: Escala, 2007. p. 20). Daí ser imprescindível ao filósofo, ou ao homem simples, que as qualidades bovinas nos devam guiar pelas veredas da vida do pensamento. Ora, atrelado às faculdades da imaginação e da memória, está a do ruminar. Que genialidade do filósofo, digo, do poeta!
Observar o pasto. Se o pasto é verdejante ou não. Escolher o que se vai comer. Depois, ruminar, ruminar bastante como um boi ou uma vaca. Em seguida, digerir o alimento, o pasto, para não dar uma indigestão. Escolher bem o que se vai comer facilita a digestão e a consequente produção de conhecimento. Essa passagem da filosofia de Nietzsche, de certo modo, é uma reação à cultura do entretenimento que pouco pensa e reflete no que faz, pouco se esquece e muito se ressente.
Com que mais nos aborrecemos? Com uma dor de cabeça ou uma dor de estômago? Independentemente da resposta, “o homem que se pune a si mesmo é o mesmo que acredita na dor como forma de engrandecimento e elevação” (MOSÉ, Viviane. O homem que sabe. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 46). Dor de cabeça aqui é a dor da consciência por um malfeito praticado. Dor de estômago é a angústia, advinda dos conflitos internos ou até mesmo dos ressentimentos. Na linha da consciência está tudo que julga, escamoteia, racionaliza, limita, controla, conhece e que impede a força instintiva do ser, o poder ser. Na linha do estômago está tudo aquilo que do humano é instintivo, por exemplo, a natureza, a arte, a criação, a ousadia, o improviso, as paixões, enfim. Estas duas linhas são paralelas e a reação de ambas pode potencializá-las, é preciso então reconhecê-las e entender por que atravessam a história do pensamento e as suas transformações.
A referência ao espírito como um estômago aparece no Zaratustra ressaltando a deterioração da vida produzida pela consciência: “Um estômago estragado, com efeito, é o seu espírito: esse aconselha-lhes a morte! Porque, na verdade, meus irmãos, o espírito é um estômago! A vida é uma nascente de prazer; mas, para aqueles em quem fala o estômago estragado, o pai das aflições, todas as fontes estão envenenadas”.
O interessante é que Nietzsche se apropria da imagem do estômago para nos mostrar quanto é importante a função da consciência: “A consciência digere, na medida em que assimila ou rejeita, selecionando, simplificando, reduzindo, processando” (idem, p. 47). Uma linha explica a outra. A consciência reflete-se no estômago e vice-versa. Por que não pensar pelo estômago? Pensar é também digerir com o aparelho da memória e do esquecimento. Segundo Nietzsche, a melhor forma de digestão é o esquecimento.
Engraçado... Mas o papel da consciência remete-nos para a cultura judaico-cristã que, distorcida e tendenciosamente, dimensiona as ações humanas ao aspeto padrão da mensagem de Cristo, dos seus atos e das suas palavras através do medo e das suas superstições; uma cultura extremamente massificadora e autoritária das igrejas, segundo a qual constituem modelos de comportamento, de dominação e servidão. Reconhecer isto cria o homem ressentido.
Em contrapartida, o caráter filosófico do estômago, avesso à cultura de rebanho apontada acima, insere-nos na perspetiva do novo, do reativo, do devir. Temos que reagir ao que aprendemos a negar por uma cultura da morte e da inércia. É preciso reaprender, senão desaprender a viver. É preciso afirmar a natureza, a própria vida, os afetos, as paixões, as pulsões, o desconhecido, a pluralidade, a mudança e o tempo.
Por falar em tempo, o deus grego Cronos casou com a sua irmã Reia e teve 6 filhos: Zeus, Hades, Posídon, Héstia, Deméter e Hera. Logo que nasciam, os filhos eram engolidos literalmente por Cronos. Só não conseguiu engolir Zeus porque a sua mãe enganou Cronos ao colocar uma pedra enrolada em panos. Em vez de comer Zeus, Cronos comeu uma pedra. Com esta história, estive a pensar na indigestão que a pedra causou a Cronos, não pela pedra, claro, mas pelo que iria suceder daí. Zeus se vingaria de Cronos e reinaria absoluto.
Jackislandy Meira de Medeiros Silva, Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Especialista em Metafísica

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