1. Finalmente travou-se uma discussão ideológica em Portugal. Num país dominado - no plano económico, social e informativo - pelo FMI, pela crise, pelo memorando de entendimento e austeridade, mais austeridade, mais austeridade, que refrescante foi esta celeuma provocada pelo desconto de 50% do Pingo Doce! Há muito tempo que não constatávamos tamanha divergência de pensamento entre a esquerda e a direita. No que respeita às finanças públicas, à economia, ao emprego, ao futuro dos jovens portugueses, a esquerda anti-democrática tem sido incompetente apática; a direita tem-se acomodado, impotente, esperando para ver o que resulta da aplicação cega da receita do FMI. Mas quanto ao Pingo Doce... opá! Fazer-se um desconto de 50% no dia 1 de Maio? O mundo está louco? Não pode ser, dizem os sacerdotes da esquerda e os prosélitos da direita: os primeiros, foram logo pesquisar, ler atentamente, memorizar o "Manifesto Partido Comunista" de Karl Marx e de Engels para apurar qual seria a opinião do ilustre pensador (ámen!) sobre o desconto chocante do Pingo Doce; os segundos (da direita) passaram logo a citar o "Caminho para a Servidão" de Friedrich Hayek para defender que a liberdade de iniciativa económica do Pingo Doce é ilimitada e que o mercado é tão generoso para os portugueses! Ah, que bom! Está encontrada a nova questão fracturante da sociedade portuguesa: os descontos do Pingo Doce. O Partido Comunista até parece que vai alterar o seu discurso e a sua filosofia: o novo materialismo dialéctico é entre o povo português, explorado pelo Pingo Doce porque faz promoções indecentes, e o "porco capitalista" do Pingo Doce que quer vender e ter lucro (ah, que chocante, meu Deus...ou, na linguagem comunista, meu marxinho!)
2. Dito isto, convém ressalvar que deste episódio do Pingo Doce só relevam três aspectos (tudo o resto é folclore político e foguetes mediáticos):
a) Os portugueses vivem grandes dificuldades e qualquer ajuda, no presente contexto, é um bálsamo para as suas almas e... para as suas carteiras. Os impostos aumentam ciclicamente, já ultrapassando (em muito!) os limites do razoável (e apesar de as taxas de imposto aumentarem, o défice do Estado está constantemente a agravar-se, o que denota bem a competência dos nossos políticos); os salários diminuem; o poder de compra é cada vez menor; os bancos não emprestam dinheiro; o desemprego aumenta...a possibilidade de adquirir o dobro pelo mesmo dinheiro é muito apelativo para os portugueses. E ajuda os portugueses a ter uma folga no orçamento familiar - é que para além do défice do orçamento do Estado, há milhões de orçamentos deficitários que correspondem às finanças das famílias portuguesas. Logo, a prepotência intelectual dos que acusaram os portugueses que aproveitaram a promoção em causa de ser "bimbos", "imbecis", "idiotas" e outros qualificativos afins deve ser veementemente repudiada - quem vive dificuldades em concreto, no dia-a-dia e experimenta o lado duro da vida, não quer saber se o Pingo Doce ou o Pingo Amargo pratica ou não dumping. Quer é, isso sim, garantir que tem comida em casa e recursos para sustentar a sua família. Eu gostaria muito que estes "bimbos", "imbecis" e "idiotas" que tanto criticam os portugueses por aproveitar uma promoção comercial se revoltassem tanto, tão ferozmente, quando o Estado aumenta impostos de forma brutal, sobretudo para os trabalhadores honestos! Então, o Estado seria qualificado como? Como "ladrão", "gatuno" e "mentiroso"? Além disso, vejamos, ainda, o argumento legal: a ASAE está a investigar se a promoção viola ou não as regras da concorrência, consubstanciando uma prática de dumping. Pois bem, creio que a violação da legalidade deve ser investigada e reprimida - tenho pena que as autoridades reguladoras não mostrem tanto zelo quando as gasolineiras concertam os aumentos de preços da gasolina para valores injustificáveis! Quer dizer: quando é para onerar os portugueses, aumentando os preços, tudo é feito dentro dos parâmetros legais; quando os preços descem, aí já estamos perante uma perversidade legal...
b) Em segundo lugar, analisemos o aspecto político desta questão. Em primeiro lugar, trata-se de uma acção de marketing da Jerónimo Martins para recuperar a sua credibilidade juntos dos portugueses, após o episódio da fuga de capitais para a Holanda para escapar à tributação portuguesa! Pretende-se dar o sinal de que, afinal, o Pingo Doce percebe e é solidário com as dificuldades dos portugueses. EM segundo lugar, os comunistas e os bloquistas criticaram apenas por uma razão: é que, no fundo, o PCP e BE têm ciúmes do Pingo Doce - este supermercado, propriedade de um "porco capitalista", fez aquilo que os comunistas fariam se fossem governo. Subsidiar os produtos básicos ou fixar um preço máximo para os portugueses adquirirem em maior quantidade - só que, neste caso, foi o mercado (um empresário privado) que cobra metade do preço das compras dos portugueses. Objectivos altruístas? Claro que não: o Pingo Doce visa maximizar o lucro. Mas desde quando é que o comunismo visou assegurar o interesse geral? A História já condenou os comunistas, não carece a minha afirmação de mais explicações. Reparem que o que Hugo Chavez faz na Venezuela, como prática reiterada e institucionalizada, não é muito diferente - só que, em vez de ser o Pingo Doce, é o Estado. O Pingo Doce virou socialista de mercado. E esta, hein?
c) Em terceiro lugar, o governo e a direita deveriam estar radiantes. A questão da promoção do Pingo Doce preencheu a agenda informativa, desviando as atenções do essencial (actuação governativa na gestão e superação da crise nacional); tratou-se de uma forma de os portugueses aliviarem o seu orçamento, sem ser necessária a intervenção do Estado; por último, a direita deveria estar radiante, pois, em Portugal, é um dos escassos exemplos demonstrativos do funcionamento do mercado e dos seus benefícios para os consumidores. Parece até que já há outro supermercado que fala em descontos de 75%...
Em suma, não adiro à hipocrisia nacional de condenar os descontos do Pingo Doce ou do Pingo Amargo. Eu, português, com dificuldades de tesouraria privada, com o cinto mais apertado do que nunca, só não fui na terça-feira aproveitar a promoção pois dela não tive conhecimento antecipada. Para a próxima, por favor, avisem. Estou a precisar. Obrigado.
João Lemos Esteves
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