O ano de 2014 começou com uma má notícia para a ciência, depois de se saber os resultados gerais das candidaturas a bolsas de doutoramento e pós-doutoramento atribuídas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Dos 3.416 candidatos para bolsas de doutoramento, só 298 receberam a bolsa, enquanto no caso dos pós-doutoramentos, só 233 cientistas receberam bolsas entre 2.305 candidaturas.
Os resultados, que a Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) considera, em comunicado, "uma razia" e que mostram uma “política de desinvestimento e de abdicação de defesa dos interesses nacionais em detrimento das opções ditadas em esferas internacionais”, já fizeram a associação marcar uma concentração para 21 de Janeiro, às 15h, junto da sede da FCT, em Lisboa.
E para além da austeridade dos talhantes, há os talhantes da investigação científica…
Assisti ontem ao debate acerca da política de bolsas da FCT, com a presença de Miguel Seabra, António Coutinho, Raquel Varela e um investigador (Edgar Almeida Gomes) de cujo nome não me recordo (e que, com todo o respeito, devia saber lá das coisas dele, mas não teve ocasião de mostrar muita reflexão sobre a política científica).
Voltou a chocar-me como os 2 investigadores seniores falavam de investigação científica como se se tratasse de um campo homogéneo, com os mesmos processos de trabalho e com as mesmas lógicas de organização. Esta enorme falta de rigor é comum há bastantes anos e tem contribuído para sujeitar as políticas científicas para todas as áreas àquilo que se tem como bom (dando de barato que o seja) para apenas uma constelação de saberes – as ditas ciências exatas, ciências fundamentais, ou o que seja. Como se estas mesmas valessem por cima dos contextos antropológicos, sociais, históricos linguísticos, comunicativos. E como se os seus métodos e processos de trabalho e de validação estivessem diretamente ligados à “Verdade”. Isto representa uma ignorância de décadas de investigação e de conhecimento adquirido. Kuhn, Habermas, Latour, Bourdieu, Luhmann, Foucault, tudo para a pia!
Como todos os “cientismos”, este tem como consequência tornar absolutos discursos que traduzem “estados da arte” assentes em circunstâncias e interesses conjunturais. Temos visto isso relativamente à economia “estabelecida”, uma “ciência” cheia de pressupostos e de preconceitos, de resto promovida, como tem sido ultimamente muito referenciado, por mecanismos de política académica que não têm nada de “científico”.
Registei a bordoada que o ministro da Economia levou, expressa por Coutinho e Varela, sem que ninguém tenha tido a coragem de o defender. Coutinho foi enfático ao sublinhar que não se prova que a qualidade científica tenha a ver com a “aplicabilidade prática”. Embora, de novo, tenha sugerido que essa “qualidade científica” é algo que se pode avaliar em si mesma, desligada de interesses conjunturais, de pressupostos culturais e de objetivos políticos.
Quanto à questão em debate.
O presidente da FCT explicou que a diminuição do financiamento das bolsas decorria de um “reajuste” (apre…) da política científica, que se traduziria em deixar de subsidiar a investigação “individual” (as bolsas que diminuíram), preferindo apoiar investigação coletiva estruturada em projetos (os centros e laboratórios, a quem a partir de agora competiria recrutar bolseiros). A 1.ª parte do reajuste consistia no corte das bolsas; a 2.ª parte consistirá no crescimento do emprego de investigadores pelos centros. Como existiria um descompasso entre o 1.º passo e o 2.º, até agora só era visível o corte das bolsas, mas ainda não a sua futura recuperação.
Dou de barato que Miguel Seabra esteja a ser sério, embora este modelo de raciocínio seja muito semelhante ao da destruição criadora (de Marx-Sombart, agora adotado pelo liberalismo): destruir emprego para que haja, no futuro, mais emprego; cortar as pensões atuais para que, no futuro, todos tenham pensões, etc.. Em geral, os resultados futuros não apareceram e, como diz o outro, no futuro estaremos todos mortos…
Independentemente disto, vejo bastantes problemas neste “reajuste”, mesmo que ele seja mais do que uma desculpa para a austeridade.
(1) Desde logo, a investigação individual continua a ser muito importante em muitos domínios (nomeadamente em muitas das ciências sociais e humanas), onde os grandes avanços são, muito frequentemente, os trabalhos “cirúrgicos” de investigadores concretos. Sem sequer referir o facto de que muita investigação inovadora (“escandalosa”) encontra resistências na sua admissão em centros (“escolas”) já estabelecidos.
(2) A investigação estruturada em centros provoca uma concentração da investigação em grandes unidades, desequipando unidades mais pequenas e contribuindo para que muitos centros universitários se limitem a atividades de ensino sem prática de investigação. Para além de que reforça mandarinatos e endogamias, como qualquer sistema que paroquialize. Por outro lado, a federação de centros, para ganhar massa crítica, tem gerado monstros totalmente incoerentes, produto de uma imaginação administrativa criadora em que muitos colegas se vão especializando.
(3) Em consequência, pode estar-se a fomentar um ensino superior de 2 vias: a via das unidades em que ensino e investigação interagem, alcançando bons níveis num e noutro domínio; e a via das unidades de ensino sem investigação, massificado e meramente livresco. Do ponto de vista social, isto é trágico, porque, como realçou Raquel Varela, a principal função das universidades continua a ser a formação de pessoas altamente qualificadas, para responder a uma ampla gama de necessidades da comunidade. Ora o apoio a projetos individuais de pesquisa de qualidade permite descentralizar a investigação, dando espaço para iniciativas de criação de saber à escala de unidades mais pequenas de ensino.
(3) Como foi dito por Raquel Varela, o financiamento dos centros não dá grandes margens para contratar investigadores. Muitos centros que conheço têm orçamentos anuais de menos de 100.000 €. Descontadas outras despesas, pouco ou nada fica para contratar, com sustentabilidade, investigadores. Até porque a incerteza das políticas da FCT não permite garantir essa sustentabilidade (5 anos) no emprego.
Novamente, esta lógica de reajuste é, na mais benévola das interpretações, uma extensão acrítica dos padrões de um setor da investigação para a generalidade.
Acho que é neste plano de discussão das políticas que a questão se deve pôr. Este assunto é, decerto, uma questão de “desemprego” e, por isso, semelhante a outras modalidades de destruição de postos de trabalho. É também uma questão de “investimento na ciência e desenvolvimento”, enquadrável na tendência para o empobrecimento das infraestruturas humanas do país. Mas é, especificamente, um problema de modelo de organização da investigação científica. Não descuidando a sua discussão social e económica, deve ser discutida no âmbito da administração da ciência.
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