Paulo Portas quer ser o Giorgio Armani da reforma do Estado. Todos os anos o estilista apresenta os novos modelos e acaba com uma frase cintilante, um laço que embrulha o conjuntinho: "Proponho para esta estação una donna moderna però rinovata." Portas também deseja um Estado moderno (alguém deseja um Estado antigo?!) e renovado (alguém quer um Estado parado?!), mas não vai além disso. Não vai, aliás, a lado algum.
André Macedo
As "110 páginas úteis" do guião, como lhe chamou ontem, são de uma pobreza inacreditável. Não é sequer um catálogo de pronto-a-vestir político. É uma loja dos 300 onde, no meio de ideias copiadas, avulsas e superficiais, encontramos um ou outro ponto que é possível debater, mas apenas por causa do nosso desespero coletivo. O que resulta dali é tão-só uma salganhada ignorante, uma coleção de chavões e banalidades que não são mais do que a redação pueril de um candidato a uma juventude partidária que passou os olhos na biografia de Hayek, a da Wikipédia.
O célebre guião, este guião, esta coisita, não é um ponto de partida. A ser qualquer coisa é um ponto de chegada. É o fim da linha. É o epílogo que arrasa as últimas aparências que ainda restavam sobre este grupo de estagiários que o País tragicamente elegeu. É a prova documental de que o Governo não sabe o que está fazer - cumpre metas impostas externamente - e nem imagina para onde irá a partir daqui.
O texto que demorou 2 anos a produzir é tão rudimentar que na verdade é apenas embaraçoso. Ontem senti vergonha alheia por Paulo Portas - o presidente do CDS acabou. Não compreendo, a não ser por vingança, raiva e desprezo profundos, como Passos Coelho foi capaz de o autorizar a apresentar esta manta de retalhos, este patchwork - Portas deve apreciar a palavra - que era suposto criar as bases para a mudança que o País terá um dia de enfrentar.
Não há quadros comparativos, não há estatísticas que permitam ver de onde viemos e para onde podemos ir, não há pensamento algum, referência alguma, não há estudo, não há trabalho. Nada. Ao pé disto o trabalho do FMI, o de janeiro, é um luxo científico. Talvez por isso, talvez porque aqui cabe mesmo tudo, Portas tenha conseguido enfiar esta frase grotesca: "(...) esta maioria tem uma matriz identificada com o chamado modelo social europeu." Tem, tem; e Portugal vai crescer 0,8% em 2014 e muito, muito mais em 2015...
Pior do que este declínio penoso do Governo é a situação em que ficamos. Ontem, em vez de sublinharem o desrespeito que este guião simboliza e revela, os partidos exibiram a habitual indignação como se aquilo fosse trabalho sério. Disseram: atenção, isto é a privatização da Segurança Social, da saúde e do ensino! Que horror! Algumas destas, digamos, ideias estão lá, sim, mas é o habitual bricabraque decorativo. A melhor maneira de matar uma ideia é apresentá-la assim - mal e porcamente. Ontem, quem ouviu Paulo Portas só teve uma reação: apagou a luz. Repito: isto por mim está visto.
Governo quer pôr limite ao défice na Constituição
Função Pública: "Menos funcionários mais bem pagos"
Executivo insiste na agregação de municípios
Governo lança reforma da Segurança Social em 2014
Educação: alargar responsabilidades das autarquias e criar "escolas independentes"
Tribunais: Objectivos nos tribunais na gestão processual
Revisão dos estatutos das magistraturas
Reformar arquitectura institucional do sistema judicial
Saúde: Gestão coordenada da ADSE com o Serviço Nacional de Saúde
O guião da reforma do Estado é na verdade o guião do Governo para a negociação do programa cautelar em que o PS terá de entrar.
O guião da reforma do Estado deixou atrás de si uma vaga de admiração e perplexidade, comparável às ondas gigantes do canhão da Nazaré que, por acaso, não merecem uma linha sequer no dito guião.
O que até nem espantaria num texto que por erro ou preguiça confunde a reforma com minudências, pormenores e generalidades mais próprias do um programa de governo (de que Governo?) do que de uma refundação do Estado. E onde o estímulo às vagas atlânticas para melhorar a economia podia perfeitamente ter sido equacionada, a par de outras medidas de pormenor.
Tudo aponta portanto para que o Governo tenha medido água com um guião cheio de efeitos especiais e um argumento excessivamente ideológico. Ninguém percebeu exactamente do que trata nem para que é que serve tal documento. Quando muito, a reforma do Estado só pode ser descrita como um OPNI (Objecto Político Não Identificado ou, eventualmente, Objecto Portista Não Identificado).
Tal como os discos voadores, a reforma do Estado não existe, mas dá muito que falar. E o certo é que este OVNI político vai andar nos céus da política nos próximos meses. Ora se, em matéria de substância, está visto que pouco ou nada acrescenta ao que já se conhecia das ideias deste Governo, vale a pena analisá-lo do ponto de vista do timing político.
Ao contrário das ondas gigantes da Nazaré, que aparecem quando menos se espera, o guião da reforma do Estado apareceu quando toda a gente estava farta de esperar por ele.
Talvez por isso, uma parte do documento é um exercício psicanalítico de autojustificação do Governo. Não só pela demora em apresentar o documento (apesar de este pugnar por um Estado mais eficiente) como para explicar por que é que a reforma só aparece na segunda metade da legislatura.
Transitando da psicanálise para a auto-ironia, o Governo garante-nos, neste documento, que “reformar é diferente de cortar”. Então por que passaram o tempo a cortar em vez de reformar? O executivo justifica-se culpando as metas da troika que era preciso alcançar (“Mudar de modelo é diferente de cumprir metas”).
Tinham-nos dito que as metas eram a consequência das reformas. Mas se não foi para reformar, afinal de contas para que serviram os cortes?
Se não se sabe o que o Governo andou a fazer nos últimos 2 anos (com honrosas excepções para áreas como a saúde ou a justiça) para além de cortes, também não é a partir deste documento que ficamos a saber o que o Governo irá fazer nos próximos 2 anos.
Tudo é esquisito. Excepto o timing. Ao transformar a (chamemos-lhe assim) reforma do Estado num programa de médio prazo, que precisa de consensos alargados e de uma revisão constitucional “cirúrgica”, que é necessária para enfrentar o chamado período pós-troika, o Governo está na verdade a querer marcar o terreno do que será uma negociação com o PS do programa cautelar que sucederá ao resgate, caso tudo corra bem. O debate do Orçamento do Estado é o próximo palco desta conversa, que se adivinha longa.
A utilidade deste (chamemos-lhe assim) pedaço de texto e desta soma de banalidades é portanto táctica e não estratégica: é uma linda canção para embalar a troika e mostrar aos credores e aos mercados como a maioria está cheia de boas intenções. Até está disponível para escrever o programa de Governo do PS, caso os socialistas ganhem em 2015. E só por ingratidão estes poderiam recusar tanta amabilidade, não é?
Os mercados e as troikas deste mundo olham as coisas ao longe. Vêem a onda que passa na televisão mas não o canhão que está debaixo de água. Com o guião, o Governo quer começar a construir uma percepção favorável junto dos credores externos, com quem negociaremos o pós-memorando e que decidirão, também eles, pensando na percepção dos mercados.
Ao contrário do que diz o Governo, o objectivo da reforma não é guiar-nos no caminho da soberania reencontrada, mas preparar uma nova etapa em que a nossa soberania permanecerá limitada.
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