O analista, Wolfgang Münchau, diz que a Alemanha está a fazer tudo mal. E lembra que Merkel é uma gestora e não uma mulher de ideias políticas.
Isabel Tavares
"Pai, posso ir à casa de banho?", pergunta um miúdo alemão. "Só depois das eleições", responde-lhe o pai. A anedota circula na internet e serve para Wolfgang Münchau, colunista do "Financial Times" e fundador da Eurointelligence, ilustrar a dependência dos alemães das eleições legislativas que se realizaram ontem amanhã. A verdade é que a expectativa não deixa apenas a Alemanha em suspenso, mas toda a Europa. Mesmo Münchau, que acredita que os outros países atribuem demasiada importância às decisões da Alemanha e dão a Merkel um protagonismo que esta não tem, admite que há medidas que devem esperar pelos resultados eleitorais. É o caso de Portugal, que deve agir imediatamente e decidir se fica ou sai do euro, uma questão prática e não de princípio, caso o governo queira ter algum poder negocial. Que tem.
Que europeu é Wolfgang Münchau?
Nunca pensei nisso... Para mim, ser europeu e ter uma nacionalidade não é conflituoso, nunca assumi o facto de ser europeu como um substituto de uma nacionalidade, como a perda de identidade enquanto cidadão de um país. Não é como os americanos e os Estados Unidos da América.
Como é, então?
Sempre vi a Europa como algo diferente dos Estados Unidos da América. Não cabe na definição de federação, de Estado-nação, de confederação ou, tão-pouco, de uma união no sentido clássico, de um clube de trocas ou de uma união de clientes. Tem a sua construção e estrutura própria e talvez seja o modelo do futuro, talvez tenha seguidores no século XXII, mas é um projecto bastante sui generis.
Há uma corrente que defende mais federalismo para a União Europeia...
O normal, na maioria dos países, é o Estado ter um peso de entre 30% e 60% na riqueza produzida - na Europa, um pouco mais; nos Estados Unidos da América, um pouco menos. A União Europeia nunca chegará lá. O tipo de Europa que eu imagino gastará muito menos do que isso, o que também mostra que a União Europeia não é nada como os Estados Unidos, é muitíssimo menor. Claro que, se olharmos para a zona euro, por exemplo, ela requer um certo grau de estruturas federativas no campo económico. Penso que qualquer coisa como 5% é mais do que suficiente para garantir o seu funcionamento, a sua estabilidade e a gestão de choques económicos que possam ocorrer de tempos a tempos - criando sistemas que nos permitem lidar com os problemas de dívida de uma forma muito mais eficaz do que aquilo que estamos a fazer neste momento. É por isso que defendo um pequeno centro de decisão, forte mas não alargado. Portanto, não sou um pró-europeu que acha que nos estão a transformar num Estado único, porque não acho.
A dívida é o nosso maior problema ou existem outras questões mais difíceis de resolver e que estão a dificultar o encontrar uma solução para este problema em concreto?
Penso que os problemas estão interligados. A crise da dívida é o problema imediato, a razão pela qual a economia não está a crescer e, como a economia não cresce, há demasiada gente desempregada. Se queremos resolver o problema do desemprego, temos de ir à sua raiz, a crise da dívida. Por isso, é para esta que tem de se encontrar uma solução. É a crise da dívida que está a impedir que a economia cresça a jusante da cadeia.
Começa a ser cada vez mais difícil a Portugal pagar a sua dívida. Um 2.º resgate é a solução?
Mesmo um 2.º resgate não iria ajudar. Um resgate não é mais do que um crédito, não reduz a dívida, a única coisa que faz é adiar o problema. Pode aliviar no curto prazo, mas não resolve nada numa perspectiva de longo prazo.
Porque é que Portugal não está a conseguir recuperar? O que falhou?
Todos os programas se basearam em hipóteses demasiado optimistas. No caso de Portugal, ninguém estimou previamente o impacte do Tribunal Constitucional, por exemplo. Mas o ponto principal nem é tanto a dificuldade em atingir um certo nível de austeridade, mas a dificuldade em regressar ao nível de crescimento necessário para a dívida ser sustentável.
O que é que pode ajudar Portugal?
Portugal precisa de uma redução da dívida, de um perdão parcial da dívida. A performance das exportações portuguesas é bastante impressionante, mas isso está longe de ser suficiente. Portugal precisa de um crescimento anual de 10%. A Irlanda saiu do programa de dívida nos anos 80, quando estava com um crescimento anual de 8% a 10%. [Nos anos 80, a Irlanda sofreu uma grave crise, tendo a sua dívida pública chegado aos 120% do PIB. Partidos e parceiros sociais entenderam-se em 1987, para darem a volta à situação. O êxito foi espectacular. Entre 1987 e 1990, as despesas correntes do Estado caíram 17%, descontando a inflação. O PIB subiu na década de 90, à média anual de 7%. Foi um dos raros casos de austeridade expansionista. Entre 1986 e 1995, a Irlanda investiu apenas 17% do PIB, contra 27% em Portugal. A estratégia irlandesa assentou na atracção de investimento directo estrangeiro virado para as exportações.] Com um crescimento anual de 8% a 10%, ao longo de um período de 10 a 15 anos, é possível pagar a dívida... Mas isto não vai acontecer a Portugal, não neste ambiente, estamos numa era diferente. Portugal conseguirá uns 2% - que é até mais do que o crescimento da Alemanha -, mas isso não é suficiente. E isto é num cenário optimista.
Se todos sabem isso, se todos estão de acordo quanto a isso, analistas económicos e responsáveis políticos, porquê insistir em algo que vai falhar?
Porque, centralmente, não há ninguém que tome a decisão. A Alemanha tem um calendário, o Banco Central Europeu tem de actuar dentro dos limites de uma moldura legal, a Comissão Europeia tem de fazer as coisas dentro de determinada moldura política... Tudo o que se faz na União Europeia, na zona euro, é uma negociação triangular entre os interesses políticos, as contingências legais e as necessidades económicas.
Mas como é possível chegar a acordo se todos os envolvidos têm interesses divergentes?
É aquilo que temos. O motivo pelo qual as coisas não estão a funcionar é porque não há ninguém em todo este processo que diga: vai resultar. Estão todos voltados para si: uns querem recuperar o seu dinheiro, o governo não quer falhar, os responsáveis não querem ficar mal na fotografia, mas nenhum dos intervenientes na negociação do acordo diz que esta é uma solução viável. Essa é uma pergunta que nunca foi feita, nunca ninguém - jornalistas, analistas, comentadores ou responsáveis pelo programa - fez essa pergunta, isso nunca esteve em causa nestas negociações. Havia necessidades muito concretas, era preciso fazer pagamentos, evitar a bancarrota, e os políticos queriam, muito provavelmente, sobreviver até ao mês seguinte. Ninguém parou para pensar.
O que pensa que deve ser feito?
A primeira coisa que a zona euro tem de fazer é reconhecer que uma parte da dívida tem de ser eliminada. E isso requer um perdão parcial e a reestruturação da dívida. Mas não pode acontecer enquanto os países credores - e não é apenas a Alemanha, a Alemanha nem é o mais radical, penso que o mais radical é a Finlândia - não o aceitarem. E isso ainda não aconteceu.
Disse que ninguém pensou na sustentabilidade do programa. António Vitorino, ex-comissário europeu, afirmou que os cidadãos europeus são ignorantes quanto às questões da Europa. Mas houve muita gente a questionar a viabilidade das medidas. Outros acreditaram que os envolvidos eram profissionais, economistas experientes, sabiam o que estavam a fazer. Isto não descredibiliza os responsáveis europeus e do FMI, que parecem não ter pensado no básico, e não afasta ainda mais os cidadãos destas matérias?
É uma boa questão, mas não me parece que as pessoas julguem essas matérias! Steve Jobs [co-fundador da Apple] disse uma vez que não compete ao consumidor saber o que quer. Eu concordo. Os cidadãos não têm de compreender a Europa, essa tarefa é de quem lida com essas questões todos os dias. As pessoas preocupam-se é com o seu bem-estar e com o facto de terem ou não emprego. Se vêem que um sistema falha sistematicamente em distribuir prosperidade pelas famílias, concluem que o sistema não funciona. Primeiro acham que é culpa do governo e, passados 10 anos, que a culpa é da Europa e do euro. Ou seja, actualmente, as pessoas dizem: estou sem emprego, quero outro governo. Dentro em breve dirão: estou sem emprego, quero sair do euro.
Não podem só achar que quem decide, nos vários níveis, é incompetente?
Podem, mas com 20% de desemprego conclui-se que é o sistema que não está a resultar. Sem mudança, a economia vai ficar deprimida durante muito tempo. Duvido que algum país tenha estômago para uma depressão que dure 10 ou 20 anos.
E quanto tempo devemos esperar para ver se o sistema tem solução?
Eu não esperaria, esperar não ajuda. Não se ganha nada esperando. O ajustamento pode até não vos resolver o problema da dívida, isso irá levar anos, não significa que vão ser felizes no dia seguinte. Mas, pelo menos, terão uma trajectória que é clara, saberão para onde vão, onde querem chegar e que medidas têm de adoptar para lá chegar. E, enquanto o fazem, poderão reduzir o desemprego. Agora, como estão é que não há esperança. Portanto, eu começaria este processo imediatamente, depois das eleições alemãs.
Por onde começaria?
Provavelmente, começaria por me reunir com outros governos - penso que é uma coisa que ainda não aconteceu. Se eu fosse primeiro-ministro de Portugal, provavelmente iria querer manter um diálogo muito estreito com os meus colegas espanhóis e italianos para ver como é que, juntos, poderíamos influenciar as decisões frente à troika, à zona euro, à Comissão Europeia e outros. Se mantiverem uma posição unida, ganham poder perante a Comissão Europeia e os restantes. Aliado a Espanha e Itália, a posição de Portugal seria mais forte face à troika do que, obviamente, se estiver separado e ainda por cima a criticar os italianos e a dizer que não é tão mau como a Espanha. Isso não ajuda a Espanha e também não ajuda a Itália, logo, também não ajuda Portugal. Portanto, não é uma posição inteligente.
Portugal deve sair do euro?
Não defendo que Portugal deve abandonar o euro, o que defendo é que deve considerar muito bem essa hipótese. O governo português tem de decidir se o país deve falir dentro do euro ou fora do euro.
O que aconteceria se Portugal deixasse o euro?
Penso que o melhor cenário seria aquele em que já existe um plano alternativo. Caso contrário, significa que teríamos de alterar tratados e, basicamente, não abandonar agora, mas daqui a 5 anos. Não existe esse tempo.
E voltaríamos ao escudo. Como seria feita a paridade da moeda?
Seria 1 para 1. Provavelmente chamar-lhe-iam o euro português, mas podem chamar-lhe o que quiserem. Claro que o valor da nova moeda iria por aí abaixo, mas até poderiam manter o euro para algumas coisas... Iriam precisar de uma estratégia para a dívida, mas depois teriam um banco central que poderia emitir tantos escudos quantos quisesse.
A Grécia vai sair do euro, deve sair do euro?
Se a Grécia sair da zona euro, que é o que acho que vai acabar por acontecer, a pressão será mais forte sobre Portugal. Sem um certo grau de mutualização de dívida, não vejo como é que Portugal pode alguma vez prosperar na zona euro. Infelizmente, a melhor opção para os gregos não está disponível. Devia ser um acordo para entrar em incumprimento, dentro da zona euro, de forma a reduzir a dívida para um nível realista - como 80% do PIB ou ainda menos. Se assim não for, é do melhor interesse para a Grécia abandonar o euro.
Há pouco falou na Irlanda, que voltou a colapsar em 2008. Também teve de adoptar medidas de austeridade duríssimas e o desemprego, que quase não existia, chegou aos 15%. A grande diferença em relação a Portugal é que o potencial irlandês de competitividade manteve-se. A sua economia cresce há 2 anos e o país consegue emitir dívida a 10 anos a uma taxa que ronda os 4%. As taxas de juro que Portugal está a pagar são justas?
As taxas de juro nunca são uma questão de justiça. Podem estar demasiado altas para o crescimento, mas?
Se estão demasiado altas para o que podemos pagar, acabaremos por entrar em incumprimento...
Exactamente, e esse é o problema da União Monetária, no qual ninguém pensou quando ela se fez. Não existem instrumentos de qualidade para resolver alguns problemas que vão surgindo. Penso que o programa das Transacções Monetárias Definitivas [TMD] é destinado apenas a países que não têm um programa de ajustamento, ou seja, também não é para Portugal. De toda a maneira, sou céptico em relação aos efeitos do programa depois de estar um ano em vigor. Na verdade, foi desenhado para Itália e para Espanha e não vejo mais nenhum país a querer aderir por razões políticas. Como programa-fantasma que é, penso que não vai sobreviver indefinidamente.
O euro vai acabar?
Não posso excluir essa possibilidade, mas não é o meu principal cenário. Claro que as pessoas não vão aguentar esta depressão se ela durar 20 anos, se ninguém resolver o problema. A dada altura as pessoas vão estar cansadas e vão concluir que, se isto não está bem, não pode continuar.
A União Europeia está condenada?
Condenada significa inevitável e não penso que isso seja uma inevitabilidade. Mas pode muito bem não acabar bem, isso é verdade. Há cenários que sugerem que as coisas não foram bem conseguidas, ninguém quer fazer diagnósticos, os interesses divergem, ninguém lidera, ninguém assume.
A chanceler Merkel é a cola que mantém a Europa unida ou aquilo que a divide?
Depende daquilo que queremos. Se queremos que a Alemanha seja líder, ela pode levar-nos numa direcção que não é aquela para onde queremos caminhar. Mas liderança não significa que nos dêem tudo o que queremos - até as eurobonds, que eu defendo. Eu discordo da sua política, mas acredito que ela é uma primeira-ministra competente e que é uma líder forte. Mas é sobretudo uma gestora, não é uma mulher de ideias políticas. Ela é muito mais pragmática do que se possa pensar, sobretudo no campo económico, até mais do que alguns colegas alemães. Merkel não lidera a opinião conservadora, é uma pessoa muito mais prática, e tem os seus limites.
O Banco Central Europeu diz que, neste momento, não vê risco em algum país da zona euro entrar em deflação. Concorda?
A deflação também não é o meu cenário principal, embora exista um risco não trivial de a economia poder entrar numa espiral deflacionista se estiver exposta a outro choque - por exemplo, um choque do género do provocado pelo Lehman Brothers.
Qual é o seu principal cenário?
Penso que a inflação ficará de forma persistente abaixo da meta para a inflação - que é um género de deflação, quando se define a estabilidade de preços em 2% [a fasquia oficial do BCE].
Acredita que a união bancária esteja a funcionar em 2014?
Algo com esse nome, sim, mas não uma união bancária a sério. Sem uma rede de segurança orçamental comum e um sistema comum de garantia de depósitos, não podemos falar em união bancária.
Na sua opinião, qual será o próximo país a capitular?
É muito difícil de prever. Pode até ser apenas uma questão emocional. No entanto, se o euro falhar, não será por causa da Grécia ou de Portugal, será por causa da Itália. A Itália será o problema que se segue.
Haverá dinheiro para ajudar a Itália e, talvez, outros países?
A Alemanha não poderia fazê-lo, mas a Europa pode. De qualquer forma, o resgate de Itália seria muito mais complicado, desde logo por uma questão de escala e, depois, pelo muito provável efeito de contágio. E também não devem subestimar o potencial de um fracasso de Portugal. Se Portugal sair da zona euro, isso levantará imediatamente questões graves em Itália e Espanha.
Na tal lógica de aliança, o que pensa que aconteceria se os 3 países, Portugal, Espanha e Itália, anunciassem a saída do euro?
Seria uma posição muito forte, acho que os restantes países iriam tentar impedir-vos. Os governos do sul da Europa subestimam o seu poder negocial. Provavelmente, os restantes países quereriam proteger os seus investimentos nesta zona e iriam ficar zangados. Isso, possivelmente, iria provocar uma mudança nas negociações. Mas os 3 teriam de saber exactamente o que querem. O governo português teria de decidir se o país deve falir dentro da zona euro ou fora da zona euro. Não poderiam fazer bluff, teriam de ser sérios e estar determinados nas suas convicções. Mas, volto a dizer, não sou a favor de que saiam do euro, o que digo é que, ao excluírem essa hipótese apenas por uma questão de princípio, estão a enfraquecer a vossa posição, estão a mostrar o jogo todo.
A Alemanha está a tomar as decisões certas?
Não, a Alemanha está a fazer tudo mal. O problema é que a Alemanha é uma grande economia aberta que se comporta como uma pequena economia. É uma economia feita para ter excedentes. E a própria zona euro, que é muito maior, comporta-se como a Alemanha e não devia. Agora todos têm excedentes. Essa estratégia terá um impacte no resto do mundo e não acredito que esta seja uma forma sustentada de resolver a situação, dependendo de os Estados Unidos aceitarem ter grandes défices. Ao transformar-se numa Alemanha, a zona euro é um factor seriamente desestabilizador para todo o mundo. E devia gerar receita não por ser barata, o que não significa que não possa reduzir salários num período de austeridade.
O resultado das eleições gerais na Alemanha pode mudar alguma coisa de essencial na forma como a União Europeia está a ser conduzida?
Penso que sim. Se a coligação actual (CDU/FDP) ganhar, o SPD será anti-governo na questão dos resgates aos países do euro. Como o governo não tem maioria na câmara alta do parlamento, a margem de manobra política é reduzida. Se as eleições resultarem numa grande coligação, não vejo mudanças para melhor ou pior - excepto o facto de as políticas se tornarem um pouco mais previsíveis.
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