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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Convenceram-nos(?) a todos que “isto” é inevitável…

Até 2008, Cristina Fallaras viveu uma vida estável, trabalhando como escritora e vice-diretora de um jornal. Então, grávida de 8 meses, foi demitida e deslizou para o estatuto de mãe desempregada e sem domicílio fixo. Um percurso tragicamente banal, na Espanha em crise. Eis o seu testemunho.
Chamo-me Cristina Fallaras e tornei-me a despejada mais mediática de Espanha. Preferia falar sobre outra coisa, mas entendo que a época e o país impõem este tipo de temas. Na terça-feira, 13 de novembro, pelas 19h40, pouco antes do início da segunda greve geral do ano em Espanha, um indivíduo do 20.º juízo de Barcelona tocou à porta do meu apartamento, na praça da Universidade. Ouviam-se já os helicópteros da polícia e os petardos dos primeiros piquetes de greve, que sempre dão um ar ligeiramente festivo a uma greve geral, quando se está em casa. No preciso momento em que o meu filho Lucas abriu a porta e disse: “Mamã, é um senhor”, deixei, ainda não sei por quanto tempo, de ser escritora, jornalista e editora, para me tornar uma despejada que pode testemunhar por escrito e argumentar diante de uma câmara de televisão. Um testemunho direto, na primeira pessoa, é muito cómodo e tem imenso impacto. A Santíssima Trindade do jornalismo: objeto, sujeito e análise, 3 em 1.
Agora, leitor, imagine um terreno do tamanho de um país, uma área do tipo da pampa. Suspenda tudo e ponha-se a imaginar.
Está? Bem, então olhe para a enorme fenda, implacável e brutal, como aberta pela unha de um deus a rasgar a terra, que corta a superfície em dois. Do buraco emana um sopro gelado, como o de flor de parca [o relento da morte]. Veja igualmente como uma dessas 2 partes (decretemos, por razões sentimentais, que é a da esquerda) cai no abismo, até se imobilizar, suspensa no escuro, arrastando todos os habitantes na queda, estupefactos, confusos. E roídos de culpa.
A outra parte desta terra que estamos a imaginar, e a que chamaremos Espanha, manteve-se no alto, temendo o risco de vir a ter a mesma sorte, com a certeza de que isso vai mesmo suceder, mas de uma forma menos grave: novos cortes nas áreas da saúde, da assistência social, dos direitos recentemente adquiridos pelas mulheres, supressão de alguns pagamentos, cortes salariais... O seu descontentamento é compreensível. Mas, em menos tempo do que levou ao país declarar que a democracia era tão indestrutível como airosa, os habitantes do bloco colapsado foram privados de absolutamente tudo. E entregariam tudo, de bom grado, saúde e futuro, para recolherem as sobras do bem-estar dos de cima.
A catástrofe
Escrevo daqui de baixo, da metade que se afundou. Já vivo há tanto tempo no escuro que os meus olhos se acostumaram à escuridão e distingo claramente os recém-chegados. Entre 2009 e 2010, 2.000.000 de trabalhadores foram parar ao desemprego. Dos 6.000.000 de desempregados, 3.000.000 já não recebem nada, e os outros 3.000.000 de cidadãos irão pouco a pouco perder um subsídio que, em Espanha, pode durar um máximo de 2 anos. E desde 2011, centenas de milhares de despedidos vieram juntar-se a nós. Como há muito que em Espanha não se cria emprego, vamos vendo-os cair e abrimos espaço para se acomodarem. Sabemos todos que é inevitável.
Daqui, mal se distinguem os que ficaram lá em cima; é preciso um esforço de memória. Sabemos como vivem, o que comem, o que compram, como se vestem e se movem, porque ainda há pouco lá estávamos. Mas a miséria impõe os seus esquecimentos e acho que isso nos salva um pouco. Os de lá de cima, em compensação, não nos veem. Não podem. Restam os jornalistas, informadores que tentam, em vão, falar sobre a pobreza, os despejos, as razões para este ou aquele suicídio. Mas se nunca nos foi cortada a eletricidade, a água, ou ambas, a ideia de miséria é sempre romanceada. É por isso que posso hoje ser útil. É uma despejada que fala.
Claro que estou surpreendida por estar aqui em baixo. Um despejo é um processo longo, que começa com um despedimento, mas que nos apanha de surpresa, como se fôssemos apanhados de calças nas mãos. Nus, no meio da grande avenida que percorríamos de táxi de madrugada, mortos de riso.
Todos os dias, por volta das 6 horas, o rádio da minha mesa-de-cabeceira ilumina-se, e uma frase prega-me um muro que me atira para o chuveiro: ganhar a vida. De facto, a vida não é nossa, é preciso ganhá-la. E quando não se ganha a vida, o que acontece? Perde-la, não? E a cada dia sou apanhada outra vez de surpresa, completamente nua.
Continua: leia amanhã a segunda parte deste artigo.

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