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sábado, 23 de fevereiro de 2013

14.ª Correntes d’Escritas – 1.ª mesa

“Mentem-nos tanto os mitos” Foi este verso de Bernardo Pinto de Almeida que deu mote à 1ª mesa de debate do 14º Correntes d’Escritas, moderada por José Carlos de Vasconcelos e de que faziam parte Almeida Faria, António Mega Ferreira, António Sarabia, Hélia Correia, Inês Pedrosa e Mário Zambujal, que glosaram o verso, manifestando diversas opiniões.
Almeida Faria defendeu que “não, os mitos não mentem. Os mitos têm sido, desde o princípio da Humanidade, a resposta possível às perguntas sem resposta. Os mitos imaginaram por nós e para nós mil maneiras das causas naturais e explicando o inexplicável ordenaram, por nossa conta, o caos. No mito, o susto, o medo e a ansiedade tornam-se menos insuportáveis”.
O escritor citou Aristóteles que dizia que “Homero e Isildo inventaram os deuses” e para exemplificar que os mitos não morrem e voltam constantemente à superfície, Almeida Faria leu alguns versos de A Terceira Miséria, de Hélia Correia, em que a autora fala em Isildo. Depois de Homero e Isildo vieram muitos outros. Desde então incontornáveis escritores, compositores, atores acrescentaram o conto e o canto dando nova vida aos mitos antigos, constatou.
Almeida Faria terminou afirmando que “os mitos nunca mentem. Quem mente somos nós que abusamos da palavra mito e a evocamos, levianamente, em vão. Precisamos dos mitos para preencher os vazios das nossas vidas”.
António Mega Ferreira referiu que “os mitos, para Platão, eram narrativas com heróis, com uma componente fantástica” e, numa interpretação funcionalista, “os mitos tinham a função de explicar o inexplicável”.
Para o escritor e jornalista, a mitologia cristã foi a grande responsável pela mitologia greco-romana ter sido esquecida durante muito tempo e só recuperada com o Renascimento. Desde o Renascimento, a mitologia clássica constitui uma fonte privilegiada da literatura, ou seja, a mitologia constitui um manancial utilizado na literatura. Na sua opinião, a tradição que vai buscar fontes na mitologia greco-romana contaminou a nossa literatura. Para além disso, as referências mitológicas clássicas estão no nosso quotidiano, afirmou Mega Ferreira, exemplificando: Ulisses fundou Lisboa; Rómulo e Remo fundaram Roma, acrescentando que “todas as grandes cidades, sobre a sua origem, produzem um discurso mitológico”.
A propósito da necessidade dos mitos, o escritor referiu Claude Lévi-Strauss que estabeleceu conexões entre mitos das diferentes civilizações num esforço para os compreender. Deixou-nos uma frase deste antropólogo francês “Os mitos despertam no homem pensamentos que lhe são desconhecidos” e concluiu “se calhar gostamos da mentira. Pelo menos, às vezes”.
Já para Antonio Sarabia, os mitos não mentem. Aliás, por trás dos mitos há verdades. Os mitos são portadores da profunda verdade, sendo que a imaginação é muito importante porque permite sofrer, sentir, viver.
O escritor mexicano referiu que “um homem inteligente aprende a partir da sua experiência e um homem sábio aprende a partir da experiência dos outros”.
E porque a riqueza do debate está na diversidade de opiniões partilhadas, Hélia Correia afirmou “sim, os mitos mentem. Mas ainda bem que mentem. Estamos todos muito devedores aos mitos e à sua mentira”.
A Vencedora do Prémio Literário Casino da Póvoa confidenciou que não resistia a explorar o tema sem fazer uma digressão etimológica, “volto sempre a casa, à origem da palavra”. E explicou que "mithós", em grego, significa palavra, aquilo que é dito oralmente, sendo que aquilo que se construía com palavras era uma história mítica.
Assumindo que “não posso falar de mito sem falar na Grécia”, Hélia Correia referiu que o grego tinha a perceção de que era um ser dotado de fala, que construía a realidade e o pensamento através da palavra. Tinham a perceção de que os mitos eram criações humanas, fruto da imaginação. Transmitiu ainda que ao mito está associado o rito, rituais com muito protocolo que forneciam segurança à sociedade, definindo-os como gestos coletivos securitários. Falou, aliás, de uma tranquilização social e moral da comunidade através da relação entre o mito e o rito.
Para Hélia Correia, “falta-nos muito nos dias de hoje. Toda esta integração do Universo em mitos e ritos criados pelos homens ficou completamente destruída por excesso de confiança científica e especialização. Estreitamos o nosso campo de saber e, para mal dos nossos pecados, somos dominados pelo economicismo que deixa um vazio, espiritual, e, qualquer dia, também fisico. Vai-se extinguindo a chama humana. Falta-nos uma espécie de recomeço, o amor pela palavra, por nos governarmos a nós mesmos. E falta o rito que religaria os seres humanos entre si”.
Para Inês Pedrosa, “não, os mitos não mentem. Mas ainda bem”. Para a escritora e jornalista, “mito é aquilo que tem coragem de matar sem causar a morte e de viver morrendo no limite em que a voz e o silêncio se unem. Assim, toda a arte é mito. Na sequência da célebre definição de Fernando Pessoa «O mito é o nada que é tudo», Eduardo Lourenço entendeu o mito como vida que não passa na vida que passa. Não é outra a ambição da literatura, encontrar as palavras que estanquem a morte”.
Num dos poemas de Fórmulas de uma Luz Inexplicável, escreve Nuno Júdice: «a criação não me espanta, nem os trabalhos de Deus para fazer sair o Homem do meio da Terra (…). A criação é feita dessas coisas que passam à minha frente como se um ecrã rotativo me fizesse descobrir tudo o que não tive tempo para fixar». Neste sentido, Inês Pedrosa afirmou que “criação e inovação não são sinónimos, ao contrário do que hoje se pretende. À inovação, inteligência e técnica bastam. A criação não se explica desse modo nem de nenhum, não cabe em nenhuma história nem nasce dos caminhos da vontade consciente que ocupa hoje o lugar dos deuses. Por isso, a criação é sempre lugar da invisibilidade, exterior e interior. Criador é alguém que atinge a cegueira inicial sem a temer e também sem se fundir com ela. O impacto que a criação provoca nos que a ela acedem tem uma força imediata. O presente ou o futuro não interessam à obra nascida para transfigurar, interessa-lhe o passado na medida em que nenhum passado acabou ainda de passar”.
Para a escritora, há muitas confusões sobre este assunto, no mundo acelerado em que vivemos onde cada vez mais gente corre sobre passadeiras eletrónicas, ou seja corre para lugar nenhum. Por isso, torna-se cada vez mais importantes as obras que nos obrigam a deixar de ser. A literatura com ou sem ecrã força-nos a esse trabalho de avançar para o invisível, de desobedecer ao imediato. Tudo está em tudo como na superfície de um rosto. Sobre mitos e mentiras, tenho procurado desaprender o que me ensinaram menina e moça para viver livremente no mito da verdade transmissível, revelou.
Divergências à parte, Mário Zambujal começou a sua intervenção provocando risos entre a plateia. O bom humor do jornalista marcou todo o seu discurso em torno de figuras mitológicas e dando prova de que elas de facto persistem à passagem do tempo e estão presentes na atualidade. Desde Afrodite que deu nome a marcas de lingerie, perfumes, casas de alterne e até produtos afrodisíacos a Apolo que identifica ginásios, restaurantes e até deu origem ao adjetivo apolíneo, entre muitos outros.
O jornalista afirmou que “muito teria perdido a Humanidade se os inventores dos mitos não tivessem existido. Escritores, encenadores, dramaturgos e entusiastas pegaram nos mitos para realizarem as suas obras”.
Para Mário Zambujal, “os mitos, se muito nos deram, mais receberam. Eles ganharam. O seu triunfo é total. Demos-lhes o céu. Mentem-nos tanto os mitos e, por isso, ocupam o topo”.     

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