A atribuição do Nobel da Paz à UE deixou muitas pessoas perplexas. No entanto, realça o politólogo José Ignacio Torreblanca, uma viagem pelos vestígios da longa “guerra civil europeia” iniciada no século XX deverá ser suficiente para a justificar.
As fronteiras da Alemanha/Polónia e Polónia/Eslováquia |
Fronteiras que definham, fronteiras enferrujadas, fronteiras esquecidas, fronteiras abandonadas, fronteiras de que já ninguém se lembra. Uma impressionante série de fotografias que explica, por si só, por que razão a União Europeia foi galardoada com o prémio Nobel da Paz. E também por que é que nós, europeus, apesar da crise existencial em que a Europa está mergulhada, temos motivos de sobra para o celebrarmos.
Para nos convencermos basta pensarmos por um momento no muro levantado pelos Estados Unidos na sua fronteira Sul. Ou nas voltas que desenha o muro de separação construído por Israel. Para já não falar da fronteira entre as duas Coreias. Essas 3 fronteiras são, pura e simplesmente, um monumento ao fracasso, uma representação da incapacidade de muitos seres humanos para conviverem pacificamente apesar de terem origens, valores e crenças políticas ou religiosas diferentes.
Nós, os europeus, já fomos assim. Esses marcos, cartazes e divisórias, aparentemente tão inocentes, são testemunhas de milhões de mortos, estão regados com o sangue de centenas de milhares de jovens que deram as suas vidas para defender essas fronteiras e foram atravessados por milhões de refugiados e de deslocados.
Melhor que a "Pax Romana"
A geração dos nossos pais sabe do que fala, porque brincou nos escombros deixados por aquilo a que os historiadores chamaram “a longa guerra civil europeia”, um conflito que, com a França e a Alemanha no centro, começou em 1870 e acabou em 1945, deixando atrás de si 2 guerras mundiais. Mas nós, os da geração seguinte, também nos lembramos perfeitamente de como era uma Europa dividida em 2 por uma “cortina de ferro”, parra usar a expressão cunhada por Churchill.
Hoje, olhando para trás, é até muitíssimo surpreendente que todas aquelas democracias que pertenciam (então) à Comunidade Europeia, que não só partilhavam valores políticos e sistemas económicos, como também se tinham unido para lutar, ombro a ombro, de mãos dadas, no quadro da Aliança Atlântica, tenham demorado tanto tempo a derrubar as suas fronteiras, a unificar as suas moedas e a suprimirem os controlos fronteiriços. Os jovens de hoje incorporaram nas suas vidas, com toda a naturalidade, a liberdade de movimentos e o euro. Mas o mundo não se rege pelos mesmos critérios.
Alsácia e Lorena, Danzing, os Sudetos ou o Danúbio, felizmente, já não têm significado algum, tendo-se convertido em meros mitos históricos. Os europeus, apesar dos seus problemas, vivem algo parecido, até mesmo melhor, com a “Pax Romana” de que gozou a Europa. Mas com uma diferença, porque enquanto a “romanização” se impôs a ferro e fogo e contra a vontade dos povos que então habitavam a Europa, a “Pax Europea” conseguiu-se pacificamente por via do direito, da democracia e do respeito pela identidade dos povos.
Projeto iluminista continua vivo
É importante recordar que as fronteiras […] não se extinguiram, nem desapareceram por morte natural. O muro de Berlim caiu por vontade dos cidadãos da Alemanha Oriental, que optou por manifestar-se e ir pelos seus próprios pés pedir asilo às embaixadas alemãs ou de outros países ocidentais em Budapeste e Praga. E também pela visão de alguns líderes, como o então ministro dos Negócios Estrangeiros húngaro Gyula Horn, que pessoalmente, com uma cisalha, cortou o arame que separava a Hungria da Áustria. É legítimo que exista um orgulho europeu. Porque, com todas as dificuldades, o projeto iluminista continua vivo na Europa. Quando Emanuel Kant falou da “paz perpétua” entre os povos estava a apontar para algo que é muito parecido com aquilo que a União Europeia conseguiu.
Os britânicos com a sua Armada, os franceses com os seus exércitos napoleónicos, os alemães com os seus Panzerdivisionen. Os europeus gastaram séculos a tentarem dominar-se uns aos outros. Agora encontraram um método muito mais subtil de invadirem países: chama-se “acervo comunitário”, denominação para o catálogo de legislação comunitária. Assim, pois, em vez de invadir um país, a União Europeia, que se tornou maior e pós-moderna, envia cerca de 200.000 páginas de legislação que o país em questão terá de incluir no seu ordenamento interno.
E, apesar de tudo, há fila para entrar: a Croácia, que entrará no próximo ano; a Turquia, que apesar das humilhações e desdéns de que é alvo continua a querer concluir as negociações para a adesão; a que se seguem a Macedónia, a Albânia, a Sérvia, o Montenegro, a Bósnia-Herzegovina e o Kosovo.
Essas são as próximas fronteiras da Europa que, se o projeto europeu continuar de pé, veremos desaparecer. Mais além ficará o espaço pós-soviético, desde a Bielorrússia, no Norte, a última ditadura da Europa, até ao Cáucaso, pejado de conflitos congelados, mas também a margem Sul do Mediterrâneo. [...] É crítica comum dizer que a Europa se converteu num ator irrelevante à escala mundial. Apesar de a crítica estar, em grande parte, certa, estas fotografias mostram que a irrelevância, se significa ver desaparecer as fronteiras entre os Estados e as divisões entre as pessoas, é uma nobre tarefa a que os outros também se poderiam dedicar.
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