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domingo, 23 de março de 2014

Programa da troika não foi desenhado para ter sucesso

Ao ponto a que a situação em Portugal chegou, com o adiamento de uma decisão de reestruturação de dívida pública, o economista grego Yanis Varoufakis acha que vai ser necessário não só uma reestruturação da dívida obrigacionista (dívida transacionável de médio e longo prazo) na mão de privados, que poderia andar no final de fevereiro em 80.000 milhões de euros, como uma mexida na parte detida pelo sector "oficial", nomeadamente pelo Banco Central Europeu (que ainda detém Obrigações do Tesouro adquiridas no mercado secundário durante a vigência do programa SMP entre 2010 e 2012) e pelos fundos europeus de resgate. Em conjunto, em final de fevereiro, seriam mais de 65.000 milhões de euros que se candidatam ao que se designa por "envolvimento do sector oficial" (OSI, no acrónimo em inglês).
Jorge Nascimento Rodrigues
Varoufakis subscreveu o manifesto pela reestruturação da dívida portuguesa com outros 73 economistas estrangeiros e sugere, em entrevista, "formas politicamente inteligentes" de realizar esse OSI. Desde janeiro de 2013 que é professor na Escola de Assuntos Públicos Lyndon B. Johnson da Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos. Com Stuart Holland e James K. Galbraith, Varoufakis publicou no ano passado uma versão atualizada do que designou por "proposta modesta" de resolução da crise de dívida europeia, que passa por uma mutualização parcial da dívida.
O que o levou a apoiar o manifesto pela reestruturação da dívida portuguesa, a menos de dois meses do final do programa de resgate da troika?
Bom, há 2 interpretações possíveis sobre o programa da troika. A primeira é que se trata de uma potencial consolidação orçamental de sucesso, que, após terminar, levará o estado membro do euro a uma dívida pública sustentável e a uma retoma económica ampla. A segunda é que se tratou, sempre, de uma tentativa cínica de “prolongar e fazer de conta” de modo a que os bancos não portugueses agarrassem a oportunidade e tivessem tempo para descarregar os ativos “podres” - ou seja, as obrigações do tesouro português que detinham - para cima do sector oficial, ou seja, sobre os contribuintes portugueses e europeus, enquanto a dívida pública até subia e o rendimento nacional sofria.
Ou seja, na 2.ª narrativa, o tempo urge?
Segundo a primeira interpretação, temos de esperar até que o programa da troika termine. Se porventura, algumas "medidas" extra até vierem a ser necessárias depois - como, por exemplo, uma pequena reestruturação de dívida -, o tempo para as introduzir virá mais tarde. Contudo, de facto, segundo a outra interpretação, o programa da troika falhará com toda a probabilidade, na medida em que, na verdade, nunca foi sequer desenhado para ter sucesso. Por isso, a segunda interpretação é a razão de eu ter subscrito o manifesto a favor de uma imediata reestruturação de dívida. Quando a reestruturação de dívida é essencial, quanto mais cedo for implementada melhor.
Em que é que a sua proposta inicial de resolução das crises das dívidas era substancialmente diferente da solução da troika há mais de 3 anos atrás?
A "Proposta Modesta para Resolver a Crise do Euro", que lancei em 2011 em co-autoria com Stuart Holland, e que com James K. Galbraith já vai, mais recentemente, na 4ª versão, defendia, de facto, uma solução bem diferente daquela da troika. A nossa proposta não necessitava que nenhum “corte de cabelo” fosse, então, implementado, sobretudo se a proposta tivesse sido posta em prática em tempo útil. Resumidamente propúnhamos que, primeiro, o BCE servisse a parte da dívida pública a vencer que estivesse dentro do acordo de Maastricht [até 60% do PIB], e, em segundo lugar, que o banco central emitisse os seus próprios títulos de modo a financiar aquela parte, e, finalmente, que os estados membros pagassem ao BCE pela manutenção integral destas obrigações.
Essa solução via BCE teria evitado reestruturações de dívida logo no início da crise das dívidas soberanas na zona euro?
Aquela conversão limitada de dívida teria garantido que não eram necessários "cortes de cabelo" na zona euro - nem para a Grécia, nem para Portugal, nem para nenhum estado membro. Mas não foi implementada. Pelo contrário, enormes empréstimos foram concedidos aos estados membros na condição de aplicarem austeridade, e o resultado foi que as nossas dívidas públicas estão, agora, ainda menos sustentáveis do que em 2011. Devido a essa lamentável evolução, e em virtude de a Europa não querer implementar a nossa proposta, o único caminho racional em Portugal é proceder imediatamente a uma reestruturação profunda da dívida. Na verdade, esse é o dever moral de um governo em relação ao seu povo. Proceder a um "corte de cabelo" da dívida que as políticas fúteis europeias tornaram ainda pior.
Em suma, a dívida portuguesa necessita de um corte profundo no valor e não só de reescalonamentos dos prazos e redução de juros?
Depois de 3 anos de "prolongamento e de faz de conta", o "corte de cabelo" agora tem de ser profundo. Um simples alongamento das maturidades - mesmo que empurre os pagamentos para um futuro distante - conjugado com uma pequena redução dos juros apenas estende a crise para o futuro. Contudo, há formas inteligentes de proceder a esse "corte de cabelo" de um modo a minimizar o custo político em Berlim e noutras partes.
De que forma?
Por exemplo, o governo português pode lançar novos títulos indexados ao crescimento com o mesmo valor da parte da dívida pública que é detida pelo Mecanismo Europeu de Estabilização e pelo Banco Central Europeu e usá-los para pagar de volta na totalidade a essas duas entidades. Ou seja, títulos cujo pagamento, quer do capital como dos juros, é automaticamente adiado se o crescimento do PIB está abaixo de um determinado nível. Na essência, traduz-se num "corte de cabelo" cuja magnitude está relacionada inversamente com o crescimento.
E chega uma reestruturação da parte privada (o que se designa por PSI no acrónimo em inglês), ou é necessário também mexer na dívida na mão do sector "oficial" (o que se designa por OSI no acrónimo em inglês), nomeadamente dos títulos detidos pelo BCE ao abrigo do programa SMP inicial e dos empréstimos dos fundos europeus de resgate?
É absolutamente indispensável um OSI. Do total de cerca de 166.000 milhões de euros de dívida pública portuguesa de médio e longo prazo (saldo no final de dezembro de 2013), cerca de 91.000 milhões, isto é 55%, já foram “transferidos” para o sector oficial [empréstimos da troika e obrigações detidas pelo BCE]. Os bancos residentes detinham mais de 34.000 milhões de euros do restante. Se o sector oficial for excluído da reestruturação - ou seja, se apenas ocorrer um envolvimento do sector privado -, os bancos portugueses sofrerão um rude golpe, se o “corte de cabelo” na dívida privada for para ter um impacto significativo. E, quando os bancos portugueses tiverem de se recapitalizar - e como não está à vista nenhuma genuína união bancária -, a recapitalização será feita pelo ... Governo, tal como aconteceu na Grécia, empurrando, de novo, a dívida para cima. Não fará qualquer sentido fazer isso.
Então uma reestruturação da dívida "oficial" é fundamental?
Um envolvimento do sector oficial - um OSI - é ainda mais importante do que um envolvimento do sector privado - um PSI - nesta fase. Dado que muita dívida foi descarregada para o sector oficial, depois do resgate.
Essa é uma lição da reestruturação da dívida grega?
É a mais importante lição do processo inicial de reestruturação de abril de 2012, que falhou espetacularmente na estabilização da dívida grega. Adiar uma reestruturação inevitável da dívida só piora o problema, e ainda mais quando se realiza um resgate que se destina basicamente a mudar os maus ativos das contas dos bancos para os contribuintes. A não ser que uma proposta "modesta" como a nossa seja implementada a nível da zona euro, um OSI é inevitável e a única questão séria é saber quando ocorrerá, quanto sofrimento o seu adiamento provocará e, finalmente, como é que Bruxelas, Frankfurt e Berlim o comunicarão ao público de modo a minimizar o seu custo político.

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