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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Os “ateus” tinham razão, graças a Deus… Milagres?

Espera lá! Mas não estava tudo a correr bem? Que raio de história é esta de o FMI pôr em causa o sucesso do ajustamento português? Nos últimos dias, colocámos dívida, soubemos que o PIB cresceu acima do esperado, as exportações atingiram recordes, o desemprego caiu, o "Financial Times" glorificou-nos, a "Economist" visitou-nos - e vem o próprio FMI enfiar-nos numa banheira de gelo? Pois, é o que se faz a quem alucina de febre.
Pedro Santos Guerreiro
O Governo anda a alucinar. A descompressão é compreensível, depois de tantos anos de recessão económica e de repressão social. E a ânsia de boas notícias é tão grande, mas tão grande, que as análises críticas passam por ousadia destruidora. Perguntar sempre ofendeu muita gente. Sobretudo os que não gostam de responder. Mas os bons indicadores de hoje não garantem boas indicações para amanhã. O fim da recessão não é o fim da crise. Estar melhor não é estar bem. Ouvi o FMI.
Sim, o FMI. É uma ironia divertida ouvir o PS a agarra-se ao FMI como elemento credibilizador, ver Paulo Portas amuar com o Fundo, pressentir a mesma turba que arrasou o Fundo tolerá-lo agora. Não foi há muitos meses que Ferreira Fernandes chamou os técnicos do FMI "uns pedaços de merda". Em título. Não é gente amada.
Ao contrário do que se diz, poucas instituições conhecem a macroeconomia portuguesa tão bem como o FMI. Eles não nos visitaram 3 vezes - estão cá desde a primeira. Nunca saíram de Portugal, há mais de 30 anos que têm delegação fixa e tê-la-ão pelo menos mais 20, para cuidar dos seus empréstimos. Não são senhores de preto que aterram e descolam. Eles estão.
É o FMI, não o Bloco de Esquerda, que escreve: "O ajustamento externo tem sido conseguido, em larga parte, devido à compressão das importações de bens que não sejam combustíveis e, ultimamente, ao crescimento das exportações de combustíveis". É o FMI, não o PS, que prossegue: "Esta dependência (...) arrisca enfraquecer os ganhos conseguidos até à data, assim que as importações recuperarem de níveis anormalmente baixos e as unidades de refinação eventualmente esgotem a sua capacidade 'extra', ao mesmo tempo que a melhoria na exportação de serviços é vulnerável a choques à procura de turismo."
Esta é a declaração mais impressionante da 10.ª avaliação do FMI ao programa de ajustamento, hoje publicado. Além dela, o Fundo diz que a competitividade das empresas não foi tão beneficiada pela descida dos salários como se supõe (os custos unitários do trabalho baixaram pouco) e permanece prejudicada por custos de contexto, logísticos (nos Portos) e de energia; o desemprego está alto e a rigidez salarial continua "extremamente elevada"; os bancos ainda têm prejuízos por assumir com créditos e imobiliário - e foram complacentes com as empresas falidas, cujas dívidas não foram reestruturadas.
É um anticlímax. Oportuno. O Governo vai surfar nos próximos meses os bons indicadores, chegará às eleições europeias com crescimento de PIB possivelmente acima dos 2% e pode dispor de uma triunfal "saída limpa". O facto de o FMI cortar rente os delírios políticos recoloca os problemas, que para quem lê jornais são pouco surpreendentes:
- O aumento das exportações é uma excelente notícia. Mas tem 3 vulnerabilidades: a dependência de produtos petrolíferos de um projeto específico da Galp; o facto de as receitas de turismo provenientes do exterior (que são contabilizadas como exportações de serviços) estarem a aumentar em quantidade, o que é fantástico, mas não em preço - André Jordan falava disso no sábado ao Expresso; e, sobretudo, o serem exportações sem investimento, pelo que resultam sobretudo de deslocação da capacidade instalada para os mercados externos, não de projetos novos ou inovadores. É por isso que não pode falar-se de um choque exportador. Sem investimento não há crescimento económico nem criação de emprego sustentável.
- A redução das importações não é perene. Quando houver investimento empresarial, haverá importação de maquinaria. Com o aumento do consumo, as importações aumentam, porque não somos competitivos na produção de muitos dos produtos que consumimos. Nem é preciso ir a um stand de automóveis. Basta ir a um supermercado e olhar para a nacionalidade do que está nas prateleiras. Made in fora daqui.
- A poupança está a ser estoirada em consumo. A taxa de poupança das famílias portuguesas aumentou muito nos últimos 3 anos. É uma atitude extraordinária, e explicável em grande parte com a redução dos créditos (o que também conta como poupança) e com a insegurança ante o futuro. Mesmo com o enorme benefício da redução abrupta das taxas Euribor (que evitou a falência de muitas mais famílias com crédito à habitação), houve uma perda de rendimentos muito grande nestes anos. Mesmo assim, os portugueses pouparam.  E mais: depositaram nos bancos portugueses, evitando uma fuga de capitais, caso único em países intervencionados. A partir de meados do ano passado, o consumo privado voltou a subir, sustentando grande parte da retoma económica. Ou seja, os portugueses estoiraram parte do que haviam poupado. Isto significa que a poupança não serviu essencialmente para financiar investimentos (através de crédito bancário a empresas), mas para consumo. Olhando para os hotéis, para as vendas de "tablets" no Natal e de automóveis em Janeiro, percebe-se em quê.
- Há uma boa parte da nossa retoma que é cíclica. Isso não tem mal nenhum, mas ajuda a relativizar o "milagre". O próprio Vítor Gaspar sempre previu essa retoma cíclica, apenas se atrasou em um ano. Para isso, ajudou muito o quadro europeu e as melhorias na economia dos nossos parceiros comerciais. Merecemos toda essa sorte (e não merecíamos o azar de, nos primeiros anos da intervenção externa, termos tido a economia externa "contra" nós). Mesmo assim, não deixa de ser, em parte, sorte. Que não nos falte.
- Muitas reformas estruturais não foram feitas, começando pela anedota (já lá vamos) da reforma do Estado, que anda há mais de um ano de gaveta vazia em gaveta vazia. Perdeu-se oportunidade para reestruturar grande parte da nossa economia e a dívida pública está a um nível assustador.
No final do ano passado, o Banco de Portugal surpreendeu com um relatório crédulo e otimista: a economia portuguesa, escreveu o Banco, tinha mudado para sempre. As famílias portuguesas tinham-se tornado poupadas, as empresas tinham-se tornado exportadoras, éramos um País novo. Soou mais a vontade do que a diagnóstico. Ainda desejo que o Banco de Portugal esteja certo. Mas para isso o FMI tem de estar errado. Redondamente errado. Porque o relatório que publicou hoje é paralelepipedicamente o contrário dessa crença. E logo agora que isto estava tudo a correr tão bem.
PS - Finalmente, a anedota: o Governo português garantiu à troika que o guião da reforma do Estado de Paulo Portas vai transformar-se em propostas concretas em Março.

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