A lusofonia é um mito para português ver, deixando escoar milhões de euros do Orçamento do Estado sob a capa simbólica do Quinto Império ou a ignorância proverbial do português eleitor.
Saragoça da Matta
De tempos a tempos bombardeiam-nos com o mito da lusofonia: um grande espaço geográfico de língua e cultura com base comum. E cada vez que disso se fala vêm as estatísticas? a começar pelos "não sei quantos" milhões de supostos lusofalantes. Porém, a melhor maneira de apreciar essa mesma falácia da lusofonia é vivê-la nas terras do antigo império luso.
Não penso no Brasil, sobejamente conhecida é a dificuldade em lá nos fazermos entender em português escorreito. A base do idioma lá falado é, efectivamente, o português. Mas a evolução foi tal que hoje é mesmo só isso: uma base histórica comum. Acrescidas as dificuldades dos sotaques, tornamo-nos necessariamente falantes de idiomas diferentes: ponham um açoriano micaelense a tentar entender-se com um brasileiro nordestino e verão a lusofonia em acção! Mais facilmente se entenderia, qualquer deles, com um inglês do que um com o outro.
Pensemos em Angola e em Moçambique: fazermo-nos entender em português, só mesmo nas respectivas capitais, e ainda assim com interlocutores diferenciados. Dirigindo-nos ao povo das ruas, sorte é que algum balbucie o português. Não é à toa que as acções de formação que são levadas a cabo por portugueses impliquem, cada vez mais, a presença de tradutores de português. Trabalhadores navais, agrícolas e dos serviços mal percebem o português, quanto mais falá-lo ou escrevê-lo.
Em Cabo Verde hoje fala-se quase só crioulo. Tempos houve em que a língua da rua era o português. Mas tentem hoje passar uns dias num hotel local e verão que nos avisos escritos o "mar é perigosa", que para os "garçons" maçã é "manzana", e que tantas outras palavras são hoje ditas em castelhano. E porquê? Porque a língua portuguesa não é pelos locais aprendida convenientemente nas escolas, e muito menos usada no quotidiano. Assim que a língua que aprendam para efeitos de trabalho seja a dos seus empregadores (é melhor não dizer patrões!). E como o grosso dos empregadores são empresas espanholas... percebe-se!
Basta entrar no hall dos hotéis e ver em que idiomas estão escritas as informações e os avisos: em inglês, alemão, francês e? castelhano! Sim, em Cabo Verde! E o mesmo se passa na Guiné e em São Tomé e Príncipe. Encontrar quem nos responda em português é mero acaso.
Se a isso somarmos a total ignorância do idioma português em Macau e em Timor, percebe-se bem o que é a lusofonia. A lusofonia é um mito: uma justificação para injectarmos milhões de euros em países carregados de recursos naturais e com economias tão fortes que nos compram por tuta e meia, como Angola faz, ou que até são possíveis compradores da nossa dívida externa, como sucedeu com os pedidos sussurrados a Timor.
Um mito, porém, que enche muitos bolsos nisto envolvidos. Um mito para português ver, deixando escoar milhões de euros do Orçamento do Estado sob a capa simbólica do Quinto Império ou a ignorância proverbial do português eleitor.
Nunca percebi muito bem a necessidade de se afirmar, em jeito de elogio, que os portugueses foram colonizadores mais brandos que os espanhóis, ingleses ou holandeses. A história é a história e deve ser o mais precisa possível, mas este facto, como argumento, é fraco e de gosto duvidoso. Há bons colonizadores? Há boa colonização? A brutalidade e a imposição (política, social, religiosa, cultural ou de outro tipo) são conceitos relativos? Parece-me que não. E sempre me espanta muito que uma afirmação da portugalidade passe tantas vezes por um discurso de superioridade perante outros e de lavagem dos nossos erros.
Inês Santinhos Gonçalves
Se trago hoje este tema para cima da mesa, é porque vários debates da Rota das Letras têm girado em torno da questão da identidade, estando o colonialismo sempre implícito.
Muito me espanta, a mim que me sei portuguesa mas muito, muito antes pessoa e ser dotado de curiosidade, que ainda se diga que a nossa identidade são os Descobrimentos e os grandes feitos de portugueses que nunca conhecemos. Muito me espanta que ainda nos sintamos comprometidos com o que fizemos no passado como se esse passado fosse nossa responsabilidade e tenhamos de o defender. Fomos bons, deixámos filhos, legado, história? Sim, mas também fomos maus, matámos, oprimimos, deixámos para trás cenários de caos que ainda perduram.
Aceitemos a história. E não nos esqueçamos que Portugal é um país, não uma ilha. Que nós somos portugueses mas antes disso, gente. Que a língua portuguesa falada fora de Portugal não é “mal falada”, porque ela não nos pertence. Que nem todo o discurso sobre a identidade tem de se centrar na nacionalidade.
E caso o meu descomprometimento com o tema vos possa parecer ingenuidade ou desconhecimento de causa, tomem antes – e à letra – as palavras do escritor angolano José Eduardo Agualusa: “Tenho um horror profundo à ideia de cultura pura e a fronteiras. Sonho com o dia em que os arquitectos transformem as fronteiras em pontes”. Se é para sonhar com o que não existe, que se sonhe com isto.
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