O escritor moçambicano Mia Couto, que venceu o Prémio Camões, considera necessário que se questione o sistema mundial e que o único caminho para que tal aconteça é a insubordinação, primeiro, em termos do espírito.
Mia Couto e Malangatana |
"Ou nós vamos melhorar a miséria, ou nós vamos resolver o mundo, a nossa vida e a nossa esperança. Portanto, acho que não há outro caminho que não seja a insubordinação", realçou.
Depois de ter recebido o Prémio Camões, o moçambicano Mia Couto afirmou: "Pensamos que um prémio serve para celebrar o que já fizemos. Prefiro pensar que se trata de celebrar o que há ainda por fazer, e quanto nos falta realizar a todos nós para que seja mais viva e mais verdadeira esta família que celebramos na nossa língua comum".
No discurso, o escritor moçambicano considerou que os povos falantes de outras línguas nas nações lusófonas têm sido esquecidos, falou dos preconceitos que permanecem sobre os outros e fez uma referência à luta pela independência de Moçambique.
Mia Couto não quis dedicar o prémio, mas sim partilhá-lo com familiares e amigos, com o seu editor, Zeferino Coelho, da Caminho, e em especial com o seu pai, Fernando Couto, que morreu este ano. "Foi ele que me ensinou, não apenas a escrever poemas, mas a viver em poesia. Este prémio pertence a esse sentimento do mundo que ele me legou como uma sombra, que resta mesmo depois de tombar a última árvore", disse.
"Partilho, finalmente, este momento com a gente anónima de Moçambique, essa multidão que fabrica a nação viva e sonhadora que venho celebrando desde há mais de 30 anos", embora muitos moçambicanos não saibam escrever ou sequer falar português, são co-autores dos meus livros e iluminam a minha escrita.
"Toda esta nação de gente tão diversa faz-se aqui representar pelo embaixador de Moçambique, meu compatriota Jacob Jeremias Nyambir, a quem eu saúdo especialmente, e também como companheiro da luta de libertação nacional pela independência de Moçambique", referiu.
Mia Couto falou da passagem de Luís de Camões pela Ilha de Moçambique, fantasiou sobre as possíveis paixões do poeta português nesse lugar e sobre a hipótese de este ter deixado descendentes que vivam hoje nas praias do Índico. "Falei da Ilha de Moçambique enquanto metáfora desta constelação de nações que falam português, mas que não são faladas de igual maneira por esse idioma. Esquecemos, por vezes, que essas nações integram povos que falam outras línguas, que vivem outras culturas e outros deuses. Somos, enfim, produto de uma história que se fez só por metade. Da narrativa do nosso passado, faltam a voz e o rosto dos que, afastados da escrita, não puderam registar outras versões dos nossos encontros e desencontros", criticou, acrescentando que "talvez os escritores de hoje possam resgatar as vozes que ficaram esquecidas e ocultas".
Ainda a propósito de Camões, lembrou que "Os Lusíadas" obtiveram um parecer favorável da censura da Inquisição, apesar de algumas reservas por causa das referências aos deuses pagãos. "Estamos longe desses tempos, mas não sei se estamos tão afastados dos desconhecimentos, preconceitos e medos sobre os outros, e sobre os deuses que esses outros se sonham. Não temos a censura da inquisição, mas temos outras censuras sem nome, que nos patrulham o pensamento e nos domesticam a ousadia da mudança, essa mudança que Camões tanto cantou como sendo a substância da vida e do tempo", considerou.
No final do seu discurso, Mia Couto declarou: "Todos sabemos o que está ainda por cumprir do vaticínio que Jorge de Sena atribuiu a Luís de Camões, e que dizia o seguinte: que da ilha rasgada pela história uma única ilha se fizesse, sem separação de miséria e de luxo, onde todos de igual modo pudessem da felicidade fazer morada".
Mia Couto - Prémio Camões de Literatura de 2013
O escritor moçambicano Mia Couto disse
que ficou surpreendido por ter sido o vencedor da 25.ª edição do Prémio Camões,
tendo ficado "muito feliz"
com esta distinção, num dia que, revelou, não lhe estava a correr de feição.
Mia Couto disse que "não esperava" ser distinguido
com este prémio e acrescentou: "Não
espero nunca uma coisa destas. Tenho com os prémios uma relação de distância,
não de arrogância, mas pensando que não vale a pena olhar para eles porque a
gente trabalha por outra razão, que são outros prémios mais importantes que este".
Mia Couto reforçou que "um escritor ou qualquer outro artista
que começa a piscar o olho a um prémio fica cego", brincando com o
nome do galardão com que foi hoje distinguido ao acrescentar que, quem o faz, "tem o olho como o Camões".
O escritor concordou que os seus
livros têm cada vez maior aceitação fora do universo da língua portuguesa,
afirmando que seria "mentira"
se o negasse.
"Mas
vejo isso como alguma coisa que eu alimento como uma missão, como uma espécie
de uma responsabilidade minha, embora ninguém me tivesse incumbido dessa
coisa",
sublinhou.
O vencedor da edição deste ano do
Prémio Camões destacou que a distinção ajuda a promover a imagem de Moçambique
no exterior, frisando que ainda recentemente esteve no Canadá, na Colômbia e
nos Estados Unidos [da América] e muita gente ignorava a própria existência
daquele país africano, "tão
periférico e tão desconhecido", como o classificou.
"Tomar
conhecimento da realidade de um país através das histórias é a melhor maneira
possível e sinto-me muito bem fazendo isso", admitiu.
Segundo Mia Couto, este prémio é
também um "contributo" para
acabar com o pessimismo em torno de tudo o que diz respeito ao continente
africano. "Acho que é bom que este
continente dê contas de si e sinais de si por via da produção artística",
assinalou.
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