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sexta-feira, 14 de junho de 2013

Narrativa da estratégia para a EUTANÁSIA de um país…

Multiplicam-se os discursos do governo e de Belém sobre a chegada do tempo do investimento, do crescimento, de super-créditos fiscais e da preparação do pós-Troika. Mas nem os que apostam nesta retórica conseguem disfarçar o quanto ela está desligada da realidade e se destina apenas a manipular percepções e a prosseguir um plano que a maioria dos portugueses contesta. Na vida real, o que se impõe é a crescente dificuldade de sobreviver, de pagar as contas, de ter esperança, de ver chegar um novo governo, que corte verdadeiramente com as políticas de austeridade e afaste os seus protagonistas.
O novo plano de cortes na despesa pública que o Orçamento Rectificativo para 2013 traduz não podia ser mais claro na separação entre a ficção anestesiante dos discursos e a realidade angustiante das práticas governativas. Depois de 2 anos sob dependência do empréstimo da Troika e de políticas de empobrecimento em benefício do sistema financeiro e dos grandes interesses privados, todos os indicadores mostram que, para a maioria, tudo está a piorar de forma acelerada: o desemprego atingiu já os 17,7% e continuará a subir; o défice no 1.º trimestre atingiu os 8%, tornando pouco credíveis as metas estabelecidas pelo governo para 2013; no mesmo trimestre, a recessão chegou já aos 4%; e a dívida pública em 2014 deverá superar 132% do PIB, bem acima dos valores que o próprio FMI considera economicamente sustentáveis ou reembolsáveis.
Ainda assim, com uma população exaurida, o executivo de Pedro Passos Coelho aproveita para impor ao país sucessivos cortes austeritários, através de mais uma brutal redução da despesa pública. A engenharia social em curso mantém os seus traços identitários: reduzir o rendimento disponível das famílias, degradar as condições de trabalho, aumentar a pobreza e a exploração, tornar a precariedade e o desemprego fenómenos estruturais, degradar os serviços públicos e as funções sociais do Estado para desenvolver negócios privados e transformar em profecia auto-realizada o sonho neoliberal do Estado como ineficiente e incapaz de satisfazer as necessidades dos cidadãos que o pagam. Esta transferência maciça de recursos é bem ilustrada pela comparação dos anunciados cortes de 4.000 milhões de euros no Estado social com as perdas infligidas às empresas públicas com os ruinosos contratos financeiros derivados SWAP, que já ultrapassam os 3.000 milhões de euros.
Este orçamento rectificativo – quantos mais haverá este ano? – não traz novidade quanto ao projecto ideológico que o sustenta, mas ameaça ser responsável por duas alterações qualitativas que podem ter efeitos cumulativos destruidores da sociedade e da economia portuguesas. Em primeiro lugar, porque os cortes na despesa pública têm efeitos ainda mais recessivos, por acelerarem a diminuição da procura interna, os despedimentos e as falências, a quebra de receitas fiscais e da Segurança Social, o aumento das despesas com prestações sociais, etc. Em segundo lugar, porque a mais recente redução das despesas está quase toda concentrada em três áreas: despedimentos na função pública, diminuições das pensões de reforma e cortes nos subsistemas de saúde e educação.
Os despedimentos na função pública visam nivelar por baixo as remunerações e protecções dos trabalhadores, sejam eles mais novos ou mais velhos, do público ou do privado, e estejam eles em situação de emprego, desemprego ou precariedade. Por muito que os governantes falem de planos de “rescisões amigáveis” ou de “requalificação”, as dezenas de milhares de despedimentos previstos e o aumento do horário de trabalho para as 40 horas semanais mostram que o austeritarismo está a aproveitar a crise engendrada pelo próprio sistema para realizar mais lucros, aumentando a exploração, e para estender a esfera da mercadorização do trabalho, anulando direitos sociais conquistados pelas lutas laborais e sindicais que impuseram mais dignidade à vida humana.
É a esta absoluta emergência de acção que responde a greve marcada para 27 de Junho pelas duas principais centrais sindicais, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e a União Geral dos Trabalhadores (UGT), bem como por vários sindicatos independentes. É de esperar que, apesar das restrições económicas que os trabalhadores enfrentam, e apesar das dificuldades que se colocam ao trabalho sindical, em particular no privado, esta mobilização possa mostrar um cartão vermelho ao governo e lançar bases sólidas de organização dos combates futuros.
É que os despedimentos na função pública, quando associados aos cortes nas funções sociais do Estado, completam um quadro de legalidade muito duvidosa e catastrófica. Às políticas activas de desemprego e depressão económica, o governo junta um imenso corte nos rendimentos dos pensionistas, directamente ou via taxação, corte a que não escapam sequer as pensões ligeiramente menos miseráveis, num país já caracterizado por mais de 80% de pensões de miséria. E ele será ainda agravado pelo desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e na escola pública, que ainda mais onera os orçamentos familiares.
É sabido como a qualidade e a universalidade da escola pública e do SNS portugueses têm sido responsáveis pelas melhores evoluções registadas em democracia. Mas infelizmente, em vez de apostar nestes sectores como motor de crescimento, o governo insiste em demonstrar que é possível retroceder, e depressa, até níveis de saúde e de formação que já imaginávamos impossíveis e que traduzem uma rota de subdesenvolvimento.
Neste contexto, o que se prepara para aplicar aos pensionistas é uma tragédia. Num país como Portugal, em que as falhas de um Estado social relativamente recente são tantas vezes supridas por uma estrutura persistente de vínculos familiares, esta crise tem mostrado que as consequências do desemprego, da precariedade e da pobreza só não têm sido ainda mais dramáticas porque as famílias, com um enorme papel dos mais velhos, têm funcionado como almofada social. Esta nova e colossal redução dos rendimentos dos pensionistas – que eles tinham todo o direito a gozar como entendessem depois de uma vida a trabalhar (e a descontar) – faz desaparecer o amortecedor social que restava em muitas famílias afectadas pelo desemprego, pela pobreza laboral, por insuficientes ou inexistentes prestações sociais ou pela doença.
Antes que a sociedade se convença de que o “Estado democrático” é dispensável, que só tira e não dá nada em troca, é altura de pensarmos que a austeridade não é um mero somatório de medidas avulsas; ela actua sobre este ecossistema que nos liga a todos e está a destruir toda a sociedade. Até ao dia em que surgirem medidas que façam os ricos perder o sono, a nossa pergunta perante cada escalada austeritária tem de deixar de ser “isto afecta-me?” e passar a ser “o que fazer para isto não nos afectar?”. Dia 27 de Junho há Greve Geral.
Mais umas doses para uma eutanásia eficaz, mas dolorosa, que continua, até ao último suspiro…
Estaremos já todos anestesiados?

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