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domingo, 19 de maio de 2013

O ADN alemão não se misturou com o dos primos...

A União Europeia parece uma Igreja corrompida, governada por um país, a Alemanha, que impõe uma ortodoxia financeira dogmática. Para a colunista Barbara Spinelli, a política deve retomar o controlo da situação, através de um cisma protestante, gerado por iniciativas populares.
 
“Martinho Lutero prega as suas 95 teses na porta
da Igreja do Castelo de Wittenberg”, de Hugo Vogel
Este tipo de coisas só acontece na Europa à deriva, não por razões económicas, mas devido à inépcia convulsiva da sua política: estamos a falar do escândalo de um Tribunal Constitucional alemão determinar hoje a vida de todos os cidadãos da União, enquanto o Tribunal Constitucional português não tem qualquer peso. Referimo-nos a Jens Weidmann, o presidente do banco central alemão, que acusa Mario Draghi de exorbitar as suas funções – salvar o euro, com os meios à sua disposição – e declara descaradamente guerra a uma moeda a que chamamos única, precisamente porque não pertence apenas a Berlim.
Na verdade, o mandato do BCE é claro, embora Jens Weidmann conteste a sua constitucionalidade: manter a estabilidade dos preços (artigo 127º do Tratado de Lisboa), mas respeitando o artigo 3º, que determina o desenvolvimento sustentável da União, o pleno emprego, o melhoramento da qualidade do meio ambiente, a luta contra a exclusão social, a justiça e proteção sociais, a coesão económica, social e territorial e a solidariedade entre os Estados-membros. Algo não está a funcionar bem no percurso atual da União Europeia, em que o artigo 3º nem sequer aparece no site de Internet do BCE, talvez por temor que Berlim fique ressentida.
Partidos devem deixar de enganar eleitores
Dentro de um ano, em maio de 2014, vamos votar a renovação do Parlamento Europeu. Essa data terá uma especial importância, sobretudo para os italianos. Porque a Europa da troika nunca teve tanto peso nas nossas vidas. Porque os seus remédios anticrise são contestados pelas populações de todo o continente, abalando mesmo o médico mais ansioso por administrá-los: no dia 22 de setembro, os alemães vão às urnas e, talvez recompensem a Alternativa para a Alemanha, um partido antieuropeu, acabado de eclodir em fevereiro. Os partidos terão de deixar de fazer crer que podem “vergar” Angela Merkel. Especialmente em Itália, vão ter de deixar de enganar os eleitores e cidadãos. Pela primeira vez, finalmente, se ousarem, poderão designar o presidente da Comissão Europeia. É o que está nos tratados.
Estamos a falar de mentiras, porque nenhum governo pode fazer vergar Berlim com os argumentos puramente económicos até aqui utilizados: um pouco menos austeridade, algum crescimento, ligeiras facilidades. Firmemente convencida de que só os mercados nos conseguirão disciplinar, a Alemanha só mudará de rumo se a política se sobrepuser às teorias económicas que degeneraram em dogma. Isto se os governos, os partidos políticos e os cidadãos manifestarem uma visão clara sobre como deve ser outra Europa, que não a atual, dotada de recursos indigentes e com um equilíbrio de poderes que foram buscar ao século XIX.
União Europeia parece uma igreja corrupta
Presentemente, a União Europeia parece uma igreja corrupta, a precisar de um cisma protestante: uma Reforma de credo e de léxico. De um plano pormenorizado (as teses de Martinho Lutero tinham 95 pontos). Só opondo-lhe uma fé política poderemos descartar o papado económico. É a única maneira de romper com a religião dominante, e Berlim terá que escolher entre uma Europa à alemã e uma Alemanha à europeia, entre a hegemonia e a paridade entre os Estados-membros. É uma escolha com que a Europa se confronta sistematicamente: Adenauer dizia, em 1958, que a Europa “não deve ser deixada na mão dos economistas”.
A ortodoxia germânica não é de hoje. Afirmou-se a seguir à guerra, com o nome de “ordoliberalismo”: como são sempre racionais, os mercados sabem perfeitamente corrigir os desequilíbrios, sem interferência do Estado. É a ideologia da “casa em ordem”: cada país expia, sozinho, os seus pecados (em alemão, “Schuld” significa tanto “dívida” como “culpa”). Solidariedade e cooperação internacional vêm depois, como recompensa para os países que fizeram bem o trabalho de casa. Tal como em Inglaterra, a democracia é invocada de modo falacioso: delegando pedaços de soberania, esvaziam-se os parlamentos nacionais. E é assim que o Tribunal Constitucional alemão é chamado a pronunciar-se sobre qualquer iniciativa europeia.
Democracias não estão em pé de igualdade
Se existe embuste, é porque, dentro do navio Europa, as democracias não estão todas em pé de igualdade: há sacrossantos e condenados. Em 5 de abril, o Tribunal Constitucional português invalidou 4 medidas da cura de austeridade impostas pela troika (cortes nos salários da Função Pública e nas pensões de reforma), por serem contrárias ao princípio da igualdade. O comunicado divulgado no dia seguinte pela Comissão Europeia (dia 7 de abril), ignora completamente o veredicto do Tribunal e “congratula-se” por Lisboa prosseguir a terapia acordada, recusando qualquer renegociação: “É essencial que as principais instituições políticas portuguesas permaneçam unidas no apoio” à recuperação em curso. A diferença de tratamento dos juízes constitucionais alemães e portugueses é tão desonesta que o ideal europeu vai ter dificuldade em sobreviver junto dos cidadãos da União Europeia.
Há quem diga que a Europa conseguirá sobreviver se a hegemonia alemã for mais benevolente, mantendo a hegemonia. Foi o que George Soros expressou, em setembro de 2012, à New York Review of Books, apresentando argumentos sólidos. O Governo polaco exige-o. Na Alemanha, a benevolência é reivindicada por aqueles que temem não a hegemonia, mas uma autoidolatria pouco ostensiva, introvertida.
Europa numa encruzilhada
Hegemonia e autoidolatria são, porém, os sintomas, não a causa do mal que assombra cronicamente a Alemanha. Se a Alemanha quis uma Europa supranacional, ao ponto de o incluir na Constituição, foi porque os defensores do ordoliberalismo (do Banco Central e da academia) foram várias vezes postos de lado. Adenauer impôs a CEE e o pacto franco-alemão a um ministro da Economia – Ludwig Erhard – que fez o que pôde para os enterrar, tendo acusado a CEE de “endogamia” protecionista e “absurdo económico”. Com Londres, tentou torpedear o Tratado de Roma, preferindo um acordo de comércio livre. Nem Adenauer, nem o primeiro presidente da Comissão, Walter Hallstein, lhe deram ouvidos e a racionalidade política prevaleceu. O cenário repetiu-se com o euro: atrelado a Paris, Helmut Kohl privilegiou a política, ignorando economistas e Banco Central. Hoje, a Europa está numa encruzilhada semelhante, mas com políticos camaleões, desprovidos de verdadeira determinação. A crise destruiu as ilusões do povo alemão. O ordoliberalismo politizou-se e acerta contas antigas.
Resta, portanto, a solução do cisma: a construção de uma nova Europa, emanando da base e não de governos. Já existe um projeto, escrito pelo economista Alfonso Iozzo: segundo os defensores do federalismo, pode assumir a forma de uma “iniciativa cidadã europeia” (artigo 11 º do Tratado de Lisboa), a apresentar à Comissão Europeia. A ideia é dotar a União com recursos suficientes para impulsionar o crescimento, em vez de forçar os Estados-membros ao rigor. Um crescimento não só mais barato, porque concertado, mas também socialmente mais justo e mais ecológico, porque alimentado pelos impostos sobre as transações financeiras, a tributação sobre a produção de carbono e a criação de um IVA europeu. As duas primeiras taxas podem angariar €80.000 a €90.000 milhões: o orçamento comunitário respeitaria o limiar de 1,27% [do PIB], na altura acordado. Mobilizando o Banco Europeu de Investimento e as obrigações europeias, chega-se a um plano de €300.000 a €500.000 milhões e a 20.000.000 de novos empregos na economia do futuro (investigação, energia).
Para isto, é preciso, no entanto, que a política volte à ribalta e deixe de ser um conjunto de regras automáticas, mas, como preconiza o economista Jean-Paul Fitoussi, uma escolha. Temos de recuperar a autossubversão de Lutero, quando redigiu as suas 95 teses e declarou, segundo alguns: “Nisto, estou certo. Não posso agir de outro modo. Que Deus me ajude, Ámen...”

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