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terça-feira, 9 de outubro de 2012

A CRISE do século ou o NEGÓCIO DO SÉCULO?

Depois das manifestações de 15 e 29 de Setembro, que reuniram nas ruas do país entre 500.000 e 1.000.000 de pessoas, a crise em Portugal entrou numa nova fase. O povo regressou, disse basta.
Doravante é muito improvável que os governantes – os nacionais e os externos – possam continuar a excluí-lo da equação. O papel que ao povo estava reservado era o de simples objecto das políticas, devendo suportar, com resignação expiatória e salvífica, todos os sacrifícios. Mas, perante mais uma escalada nos cortes austeritários que continuam a amputar as vidas dos trabalhadores, dos desempregados e dos pensionistas, em Setembro atingiu-se um ponto de saturação.
As mobilizações populares sinalizaram o estilhaçar da narrativa dominante associada à austeridade europeia: necessidade, inevitabilidade e eficácia. Foi preciso fazer alguma coisa de extraordinário, porque se deixou de acreditar que as medidas de austeridade fossem limitadas no tempo, ou que melhorassem as contas públicas, diminuíssem o desemprego, detivessem a espiral da dívida e colocassem o país numa rota de crescimento.
Nenhum desses objectivos era real, nunca foi. A austeridade não é um parêntesis findo o qual se vá regressar à realidade anterior (mesmo com todos os problemas que ela tinha, a começar pelas desigualdades). Os sacrifícios a que a esmagadora maioria da população está a ser sujeita não são úteis, pelo menos não para a própria população. Os beneficiários da austeridade são os detentores dos mais elevados rendimentos, os credores, os especuladores, os rentistas. Mais do que da crise do século, conviria falar do negócio do século. Um negócio que está a destruir as sociedades, as economias e a própria democracia.
Para os leitores do “Le Monde diplomatique”, este falhanço da receita da austeridade não tem nada de imprevisível – muito mais imprevisível era saber que ponto de saturação poderia trazer o regresso do povo, como sujeito histórico. Também não confundem o falhanço das políticas de austeridade (a inadequação dos resultados destas políticas aos seus objectivos enunciados) com o fracasso do “regime austeritário” (que seria a inadequação dos resultados aos verdadeiros propósitos desta política imposta à escala europeia).
Com efeito, a expressão “regime austeritário” é usada nestas páginas desde Novembro de 2010 [1] para designar uma suspensão sem fim à vista do contrato social em que assenta a democracia e os direitos a ela associados, invocando uma emergência económico-financeira que se torna uma profecia auto-realizada e desencadeia uma espiral recessiva, com todas as suas consequências. Estas análises são herdeiras das que o “Le Monde diplomatique” faz há décadas sobre o neoliberalismo e sobre os programas de ajustamento estrutural impostos por instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) na América Latina ou na Europa de Leste. Não acordámos agora, como tantos órgãos de comunicação social, para os verdadeiros efeitos que decorrem desta receita neoliberal; nem adormeceremos na primeira volta em que a austeridade seja obrigada pela mobilização popular a ser um pouco menos escandalosa.
Já o dissemos num livro sobre a crise e a “economia de austeridade” que colige artigos de autores portugueses publicados nestas páginas desde 2008 [2]: o austeritarismo é a mais recente mutação do pensamento único e, enquanto ele não for compreendido pela maioria como um poderoso mecanismo de delimitação do campo do que é pensável e possível, será muito mais difícil contrariar as suas desastrosas, mas absolutamente previsíveis, consequências.
Enquanto se afirmar, como agora se ouve e lê em grande parte da comunicação social, que neste momento é a matemática, e já não a política nem a ideologia, que demonstram que estas medidas de austeridade estão a ser uma má resposta à crise, estar-se-á a mascarar questões importantes e a delimitar o campo da discussão. Em primeiro lugar, porque os números concretos (e trágicos) da austeridade têm valor empírico argumentativo, é certo, mas não podem ser apresentados por toda a gente, e muito menos por especialistas e responsáveis por áreas económicas, como uma surpresa de que ninguém estava à espera. Em segundo lugar, porque fazer uma leitura da austeridade que ignore a sua vocação política e ideológica, ainda por cima invocando uma pretensa pureza técnica e neutralidade política da argumentação, é uma forma de manter o debate num terreno pretensamente asséptico, mas na realidade empobrecido. Sobretudo quando a população está perante uma solução governativa esgotada, é fundamental colocar à discussão as escolhas de caminhos alternativos que podem ser seguidos e que não são meramente técnicos, mas políticos.
Por muito que pareça que a gravidade da situação nacional e o colapso do modelo de integração europeia abriram um pouco o debate público, a verdade é que o campo do que é pensável e possível continua muito delimitado. Na edição portuguesa do “Le Monde diplomatique”, apesar de todas as dificuldades que uma crise como esta nos impõe [3], continuaremos a contribuir para o alargamento dos termos do debate. Colocando cenários, convidando à reflexão. São disso exemplo as páginas que este mês publicamos, da autoria dos economistas Alexandre Abreu e Eugénio Rosa, sobre as consequências de uma denúncia do Memorando de Entendimento com a Troika [4] e sobre os rumos do financiamento sustentável da economia, tendo em conta que os sacrifícios impostos pela austeridade são incompatíveis com o crescimento económico.
Neste projecto jornalístico estamos convencidos de que um povo, para poder ser sujeito das suas escolhas, tem de ter fontes de informação independentes que alimentem uma reflexão aprofundada e sejam úteis para fazer escolhas. É uma tarefa difícil nas condições do campo mediático. A generalidade da comunicação social insiste numa informação superficial e num estreitamento do pluralismo que contribui para criar um povo muito subalternizado. Isso foi bem visível recentemente, com a distribuição de elogios (era esse o tom) a um povo “crédulo”, que mostrou capacidade de “confiar” e de aceitar com “boa fé” os sacrifícios, até ver que eles não resultam.
Quanto sofrimento individual, destruição social e da economia, e quanta quebra de confiança na democracia teriam já sido evitados se entre a população, em vez de perda de credulidade e quebra de confiança, tivéssemos uma compreensão do funcionamento da crise, uma confrontação crítica de pontos de vista e uma capacidade para formular alternativas sustentáveis? O regresso do povo que importa construir é este.
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Notas
[1] Cf. “Democracia contra regime ‘austeritário’, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2010.
[2] José Reis e João Rodrigues (orgs.), Portugal e a Europa em crise – Para acabar com a economia de austeridade, Actual Editora/Le Monde diplomatique – edição portuguesa, 2011.
[3] Uma crise que afecta várias das 51 edições do Le Monde diplomatique, e em particular as dos países do Sul da Europa, com várias características comuns – cf., nesta edição, Serge Halimi, “Deixámos de ter tempo…”.
[4] Banco Central Europeu (BCE), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF) da Comissão Europeia.

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