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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Um jornal “Europa” pode ter papel histórico na União?

Um facto excepcional, que acaba de ocorrer na área do jornalismo, poderá ser um evento histórico de excepcional importância, podendo concretizar-se como uma contribuição de grande relevância para a construção efetiva de uma União Europeia. A busca deste objetivo tem apresentado avanços e retrocessos, como ocorreu com a tentativa de aprovação do projeto de uma Constituição da Europa que, por não refletir as aspirações populares, não sensibilizou a maioria dos europeus e acabou sendo rejeitado em consulta formal aos povos interessados.
Dalmo de Abreu Dallari - jurista e professor emérito pela USP
Outra iniciativa buscando a unificação europeia foi a criação da moeda única, o euro, que, sem dúvida, facilitou enormemente o intercâmbio entre os europeus, assim como entre estes e os demais povos do mundo, mas que ainda sofre restrições muito sérias, como a recusa da Inglaterra em adotar o euro como substituto de sua moeda tradicional. A par disso, os factos mais recentes demonstraram que a busca de integração a partir do fator económico é extremamente difícil, por vários motivos, entre os quais estão os desníveis económicos e a poderosa, e praticamente inevitável, influência de fatores políticos e sociais internos de cada país nas atividades económico-financeiras e, por decorrência, no curso da moeda circulante.
Uma nova tentativa de busca da unificação europeia acaba de ser posta em prática por intermédio do jornalismo. No dia 26 de janeiro último, foi publicado em seis países europeus, anexado a jornais de grande circulação em cada um desses países, um suplemento denominado “Europa”. Um dado inovador e surpreendente é que, embora publicado no idioma local de cada um, em todos eles o conteúdo do suplemento, incluindo informações, comentários, entrevistas e depoimentos, era exatamente o mesmo.
O objetivo é buscar a integração a partir do conhecimento generalizado e simultâneo do que vem ocorrendo nas diferentes regiões e em diversas áreas de atividade, por todos os europeus. Deste modo, todos poderão conhecer e formar opinião sobre temas básicos que afetam a vida dos povos, esperando-se que, a partir daí, se desenvolva uma cultura comum a todos.
Do movimento à dúvida
Na primeira edição, agora publicada, foi exposto o plano de organização do jornal, compreendendo várias secções, dedicadas a diferentes perspectivas das atividades sociais. Nesse número inaugural, a primeira página foi utilizada para exposição dos objetivos da publicação do suplemento “Europa”, sintetizados num editorial assinado por uma jornalista francesa, Sylvie Kaufmann, do jornal Le Monde.
Depois de observar que a palavra “Europa” está hoje associada à ideia de crise, diz o editorial que, com ou sem crise, a Europa existe e está na cabeça de todos os europeus, nas suas vidas, na sua história, na sua cultura e na sua economia. E assinala que, curiosamente, não existe um jornal europeu para contar às pessoas comuns essa vida comum, essa “política interna de vinte e sete” – que é o número de países integrantes da União Europeia.
Então, num grupo de seis, para começar mais modestamente, decidiu-se criar o suplemento comum “Europa”, a fim de cruzar os olhares e contar juntos o que une os europeus. Associaram-se nessa empreitada os jornais Le Monde, da França, The Guardian, da Inglaterra, El País, da Espanha, Süddeustsche Zeitung, da Alemanha, La Stampa, da Itália, e Gazeta Wyborcza, da Polónia, para realizar um número autenticamente europeu, com um sumário comum.
As secções que compõem o suplemento são dedicadas ao seguinte temário: “Europa que se movimenta”, com notícias que vão do futebol ao teatro e incluem também a circulação de estudantes num “eurocampus”, assim como a troca de experiências na área empresarial, com informações sobre intercâmbios europeus que já ocorrem nessas áreas; a secção seguinte é denominada “Europa que pensa”, que nesse primeiro número fez a publicação de um longo e substancioso artigo intitulado “A cultura, nossa única identidade”, de autoria de Umberto Eco, o notável escritor italiano, especialista em cultura de massa, que sustenta a vantagem e a possibilidade de integração dos europeus através da inteligência e da cultura; em seguida vem “Europa que se transforma”, dando notícia de inovações relevantes que abrangem alterações na utilização dos meios e recursos disponíveis, implicando mudanças no relacionamento entre os europeus.
Assim, informa-se sobre a ida, em número significativo, de trabalhadores qualificados da Espanha para a Suécia e Noruega e de polacos para a Inglaterra. Noticia-se, também, que desde 1998, quando uma lei francesa criou essa possibilidade, vem crescendo o número de europeus de diferentes países eleitos conselheiros municipais na França, tendo sido eleitos 396 nas eleições de 2008.
A secção seguinte é dedicada à recuperação da memória histórica, registando-se aí o depoimento de pessoas com idades entre os 25 e os 65 anos, falando sobre o que viram e viveram e sobre o que esperam da Europa. Outra secção é dedica à “Europa que governa”, dando-se destaque a informações e comentários sobre a orientação política e a influência no conjunto europeu dos governos dos seis países que participam do suplemento, com artigos escritos por intelectuais e antigos governantes, a respeito do futuro da Europa e da possibilidade de concretização da União Europeia. Vem depois uma secção de “Debates”, com várias opiniões sobre o futuro da Europa; em seguida uma secção de polémica, intitulada “A Europa que duvida”, registando a existência de agrupamentos e manifestações contrários à União Europeia nos seis países que integram o suplemento.
Os “imigrantes pendulares”
Na última secção, denominada “Europa”, faz-se o registo do que vem ocorrendo em Bruxelas, onde estão sediadas as duas instituições europeias – a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu. Nessa secção está registado um minucioso depoimento de Petros Markaris, representante da Grécia na Comissão Europeia.
Depois de relembrar muitas situações já vividas pela Europa, com encontros e desencontros, Markaris observa que os governos dos países europeus mais influentes dão muito mais atenção ao que ocorre nas suas respectivas capitais do que em Bruxelas e, refletindo as dúvidas que são ainda muito fortes quanto à possibilidade de uma efetiva união dos europeus, faz a seguinte observação: “Bruxelas é o lugar em que se pode observar de muito perto a mistura de culturas e a sua falência”.
Nas entrelinhas das informações e dos comentários relativos aos fatores favoráveis e contrários à integração europeia, há vários aspectos que merecem especial consideração. Assim, uma particularidade da circulação de trabalhadores entre os países europeus é o facto de que muitos deles vão a outro país para trabalhar sem deixarem de residir com as suas famílias no seu lugar de origem. Alguns usam o comboio, outros utilizam o transporte aéreo de baixo custo, saindo para o trabalho na segunda-feira de manhã e retornando na sexta-feira à noite, passando os fins de semana com as suas famílias.
Esta prática fez surgir uma expressão pitoresca, usada para definir, com um misto de realismo e ironia, o modo de vida desses trabalhadores, que são designados “imigrantes pendulares”. Na realidade, eles participam, concomitantemente, de duas culturas bem diferenciadas, como os polacos que durante a semana vão trabalhar na Inglaterra. Isso facilita a integração europeia, pois demonstra que é possível participar voluntariamente e sem conflitos de outra cultura, sem abandonar sua formação cultural tradicional.
Integração pela cultura
Outro aspecto merecedor de atenção é o facto de que essa busca de integração europeia, supranacional, ocorre ao mesmo tempo em que ainda persistem alguns problemas, mais ou menos agudos, de integração nacional. Assim, por exemplo, a Itália obteve a sua unificação política e jurídica formal em 1870, quando Roma foi proclamada e aceite por todas as unidades regionais como capital do Estado italiano. Entretanto, perduram diferenças regionais acentuadas. Lembrando o problema mais agudo, o noticiário político de hoje dá grande ênfase à Liga Norte, um vigoroso e ativo movimento político que exige tratamento diferenciado para a região Norte da Itália.
Dificuldades de integração nacional ocorrem também na Espanha, que bem recentemente conseguiu reduzir as dimensões da resistência da região basca à plena integração no Estado espanhol. Na Bélgica existem diferenças nítidas e profundas entre flamengos e valões, havendo ainda uma terceira zona diferenciada, de predomínio da língua alemã e de outros elementos culturais de característica alemã. A Inglaterra, por sua vez, enfrenta sérios problemas de reivindicações independentistas em vários dos integrantes do Reino Unido.
Ao que parece, estas divergências internas dos Estados europeus não se constituem num sério obstáculo para a busca da integração europeia, num plano superior, mas são aspectos culturais que não podem ser ignorados na busca da construção da União Europeia.
Como se verifica, a criativa e audaciosa inovação do jornalismo, que é a publicação de um jornal da Europa, poderá ter alto significado histórico. Quando menos, será um valioso instrumento para a aproximação dos povos, fornecendo elementos para que em cada núcleo cultural se tenha conhecimento mais preciso do que é, na realidade, cada um dos demais e do que ocorre de mais significativo em cada um deles. Deste modo, poderá ser mais fácil atingir o objetivo que, na opinião de Angela Merkel, a notável chanceler alemã, é o grande desafio: o estabelecimento de uma política interior da Europa, para que se possa falar com propriedade de uma política exterior europeia.
Em síntese, a criação do jornal “Europa” é, em si mesmo, um passo altamente positivo e uma contribuição relevante para a aproximação dos povos e poderá ser extremamente valioso para a busca de integração pela cultura, que será um estímulo à solidariedade e garantia da paz.

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