1. Eis que o Governo resolveu adotar a última inovação em matéria de austeridade. O último grito da moda da luta ao desperdício e à pieguice (Passos Coelho dixit) dos portugueses: acabou-se o Carnaval! Acabou-se a fanfarra! Agora, no Carnaval, vais trabalhar - senão o Passos Coelho leva a mal!
2. Porque razão o Governo acabou com o feriado do Carnaval? Fácil: primeiro, porque pretendeu dar uma imagem de grande rigor, trabalho e disciplina na aplicação das medidas previstas no memorando - o que implica dar um sinal claro de que acabou o facilitismo ou a benevolência (?) para com os trabalhadores. O Governo de Passos Coelho não podia, pois, manter o feriado do Carnaval no momento em que a troika veio a Portugal para fiscalizar o cumprimento da sua receita para "curar" as finanças públicas nacionais (note-se que a troika já estivera em Portugal, com o mesmo fim, com o país paralisado em virtude de feriado no último verão); em segundo lugar, seria incongruente com a política de redução de feriados do Governo manter o Carnaval com tal estatuto. Finalmente, em terceiro lugar - e este é o argumento principal, que passou despercebido por vários comentadores políticos - o Governo tentou dar uma imagem de firmeza para a opinião pública, criando uma tensão com o poder local e até responsabilizando os privados.
Ou seja: o Governo de Passos Coelho não trabalhou apenas para a sua imagem externa junto da troika, mas sobretudo visou granjear o apoio da opinião pública recorrendo a um dos clichés habituais da vida política portuguesa (a de as autarquias locais são o "cancro" financeiro da nossa democracia; os principais esbanjadores de dinheiro). Como? O Governo já sabia que um número relevante de Câmaras Municipais iria obviamente dispensar os seus trabalhadores no dia de Carnaval: porque, afinal de contas, investiram na própria organização dos festejos do Entrudo e isso poderia beneficiá-las em termos de captação de turistas.
Ora, este era o pretexto ideal para o Governo criar um antagonismo entre aqueles que querem acabar com o regabofe, com a irresponsabilidade nacional (o Governo) e aqueles que querem manter os mesmos vícios de sempre, os gastos irresponsáveis de outrora (leia-se, o poder local). Até o timing da divulgação da decisão do Governo foi escrupulosamente calculada: em vez de anunciar logo no momento em que se discutiu a abolição dos feriados, o Governo aguardou pelo período carnavalesco para dizer aos portugueses que o Carnaval é, apenas, mais um dia de trabalho.
Politicamente, o cálculo do Governo é o seguinte: a nossa política global já se pauta pela austeridade; a situação no presente ano será ainda pior; logo, a única forma de conquistar o apoio (ou a compreensão dos portugueses) é assegurar a coerência da nossa política de rigor e esforços. Isto, claro, parte do pressuposto que está bem assente na cabeça de Passos Coelho de que há uma "maioria silenciosa" de portugueses que aspiram por uma ruptura com as práticas e as mentalidades políticas dos últimos anos. O problema é que esta mudança é mais uma operação de marketing do que uma mudança efectiva: e aqui tão próximos, tão semelhantes que são os Governos de José Sócrates e Passos Coelho!
3. Para animar a polémica, eis que surgiu o indefetível Miguel Relvas a ajudar à festa: segundo o nosso ilustre primeiro-ministro oficioso, as autarquias, que estão largamente endividadas, foram irresponsáveis ao não acatar a decisão do Governo de não dar tolerância de ponto aos seus funcionários. Eis a prova de que não há Carnaval, mas há ainda bombos da festa no Governo - é que ouvir Miguel Relvas a falar de rigor é, no mínimo, risível. Oh, meu caro Miguel Relvas, o senhor foi ministro no Governo de Durão Barroso; foi ministro no Governo de Santana Lopes - executivos em que a nossa dívida pública não abrandou! E já então se falava em apertar o cinto! E ao contrário da administração central - em que quando há necessidades de financiamento asfixiam-se os portugueses com impostos - que esbanja o dinheiro muitas vezes não em benefício de todos os portugueses, mas sim de alguns amigos políticos, as autarquias têm melhorado o nível de vida de muitas pessoas.
É claro que o poder local tem muitos defeitos: mas foi uma das conquistas mais extraordinárias da democracia. As autarquias e os autarcas têm contribuído para o desenvolvimento social de Portugal. Há que corrigir as suas falhas, mas não estigmatizá-las, torná-las o inimigo número 1 do discurso político. Passos Coelho e seu fiel séquito Miguel Relvas não percebem esta realidade elementar. Estão a seguir um caminho muito perigoso. Quem avisa...
4. E contra o poder local tal como está estruturado, foi mais uma estratégia de tentar convencer os autarcas e os cidadãos de que a Reforma Administrativa do Estado imposta pela troika (destruição do tecido histórico: do berço, das memórias e das tradições) como está e com estes autores não é possível… E oxalá não seja!
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