Os dirigentes europeus utilizam o espetro da guerra a torto e a direito, para justificar as suas políticas para salvar o euro. Mas este argumento já não pega, defende o filósofo holandês Paul Scheffer. O apoio dos cidadãos deve ser conquistado com verdadeiros argumentos. Excertos.
São imagens que ficam na memória: um Willy Brandt arrependido, de joelhos no gueto de Varsóvia; Helmut Kohl e François Mitterrand de mão dada no campo de batalha de Verdun; e, recentemente, Vladimir Putin e o primeiro-ministro Donald Tusk, diante da vala comum de Katyn. Estes gestos de reconciliação selam a culpa e a vergonha sobre as guerras na Europa. E ao contrário do que muitos pensavam, essas emoções não diminuíram com o tempo.
O mesmo se passa com palavras de advertência surgidas, nos últimos meses, da Polónia, da França e, é claro, da Alemanha, como as de Angela Merkel: "A história mostra que os países que têm moeda em comum não se guerreiam entre si.” O presidente da UE, Herman van Rompuy, deu a versão sintética: "Com o euro, é a União que cai e, portanto, a principal garantia de paz."
Não é fácil argumentar contra este "isso nunca mais". Durante demasiado tempo, sempre achei que a referência à guerra devia estar no centro do ideal europeu. No entanto, o uso desse "isso nunca mais" já não tem eficácia. Imagens angustiantes de um possível retorno a conflitos violentos desviam as atenções. Pior: invocar a guerra é um argumento gasto e cansado.
A Europa existe com o consentimento dos cidadãos
Uma lição importante a tirar da crise do euro é que a Europa não foi suficientemente objeto de debate democrático. Isso ficou patente no referendo [holandês] sobre a "constituição", em 2005. As pessoas que queriam votar “Não” (feitas as contas, 61%) eram sistematicamente interpeladas: "Mas leu o texto?" Essa pergunta nunca foi feita aos que queriam votar a favor da constituição, pois estavam do lado certo da história.
Assim, o slogan "guerra, nunca mais" leva rapidamente a um défice democrático. A Europa existe ou cai com o consentimento dos cidadãos. No referendo sobre a constituição, houve pouco debate racional sobre custos e benefícios, objetivos e meios.
Nunca foi dito claramente que, com a criação de um destino comum na Europa, Berlusconi era também nosso político, que o défice orçamental da Grécia era também nosso, que os trabalhadores ilegais legalizados em Espanha eram também nossos futuros cidadãos.
Por outras palavras: exportamos estabilidade na Europa, mas também importamos instabilidade. Poderemos, depois, pesar os prós e contras, mas é preciso que as coisas sejam faladas.
Para lá do "isso nunca mais", precisamos de uma nova justificação para a integração europeia. Temos de começar por considerar o re-equilíbrio das relações de força no mundo. A montanha de dívidas do Ocidente e o excedente orçamental da China indicam uma mudança fundamental no mundo. Na última década, mais de 3/4 dos países em desenvolvimento tiveram um crescimento maior do que a América do Norte ou a Europa.
Para contar uma nova história da Europa, temos de escolher não Berlim mas Pequim como ponto de partida. Não pode começar em Paris, mas em São Paulo. Por outras palavras: só é possível compreender a Europa a nível nacional se tivermos uma nova representação do estrangeiro.
Uma forma de eurocentrismo
O slogan "guerra nunca mais" é uma forma de eurocentrismo. O olhar é dirigido involuntariamente para o interior, quando existe um motivo essencial de integração fora do continente. "A Europa" é a única escala em que podemos estabelecer um modelo de sociedade no quadro da economia global. Se funcionar, quando se fala de integração europeia, deixa de se tratar de uma perda de soberania, mas de uma influência crescente através de uma ação conjunta. Em princípio, o euro pode contribuir para isso.
Outra razão relaciona-se com as nossas fronteiras externas comuns. O alargamento da União é uma conquista importante, mas tem um preço. Devido ao alargamento, a União está agora delimitada por regiões instáveis. Estamos rodeados por uma cintura de países, como os do Norte de África, os Balcãs, o Médio Oriente e as repúblicas da antiga União Soviética, que é das menos seguras do mundo.
Mais cedo ou mais tarde, a União terá de se tornar uma comunidade em termos de segurança, para gerir uma fronteira externa comum. Neste domínio, temos um grande défice: só conseguiremos encontrar uma nova justificação para a integração europeia quando a União proporcionar não apenas abertura, mas também proteção.
No entanto, um apelo para "mais" Europa não tem o peso de um desejo de "mais" democracia, especialmente agora que uma nova união orçamental está a ser fabricada, à pressa e em cima do joelho, nas costas dos eleitores. É uma iniciativa muito arriscada: repetem-se os erros feitos com a introdução do euro. A crise do euro não é uma fatalidade, mas um convite a assumir responsabilidades.
União das democracias sociais
Se o euro pode realmente ser salvo através da transferência para Bruxelas de responsabilidades orçamentais essenciais, é preciso pedir ajuda sendo convincente. E se a união monetária continuar a ser uma união de transferências, essa repartição entre regiões mais ricas e mais pobres deve ser desejada e defendida.
Se, em última análise, as maiorias dentro dos Estados-membros considerarem, depois de referendos ou eleições, que uma união orçamental é um passo excessivo, há um veredicto que é vinculativo. A consequência extrema pode ser os países saírem da zona euro ou o euro não ser viável como tal.
Não, não é muito agradável. É por isso que políticos como Merkel e Van Rompuy invocam a instabilidade e falam de guerra. Mas se é possível demonstrar de forma convincente que o fim do euro terá consequências económicas e políticas muito negativas, porque há tão pouca confiança na possibilidade de ganhar maiorias para a causa? Porque preferem contar com o efeito dissuasor do passado, em vez de utilizar a atração de um futuro próximo?
A busca de uma nova justificação para Europa, para lá do "isso nunca mais", não significa ajoelhar-se perante um realismo de custos-benefícios ou uma escolha do menor divisor comum.
Pelo contrário: o ideal é uma economia de mercado dominada por justiça, sustentabilidade e abertura. A união das democracias sociais é, por excelência, o que a Europa pode manifestar ao mundo como possibilidade. Esse é o objetivo, os meios são-lhe subordinados. Por isso, é essencial continuarmos a lembrar-nos da última guerra, e de nunca mais a utilizarmos como desculpa.
A Doutrina do Choque (The Shock Doutrine)
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