Nota prévia – Publico muitas vezes aqui artigos sobre as mais variadas áreas, de autoria de especialistas brasileiros, pela simples razão de não encontrar os mesmos temas tratados por especialistas portugueses e quando surgem, a linguagem de tão erudita, cansa qualquer curioso.Mas só dou a público o que é público na sua essência, ou seja, quando os temas/problemas são “iguais”, independentemente do território em que estão localizados e focalizados.Neste caso, é a exclusão e a estigmatização dos pobres que se reflete na urbanização, ou em que a urbanização as acentua, tanto faz que seja em S. Paulo, como no mais recôndito local do planeta e em Portugal também e de forma bem vincada.
Para quem se interessa por este tema, ele está bem explicitado num outro artigo, muito sintético e incisivo, que publicamos há quase um ano, e que pode ler aqui: "Um neologismo com (um) sentido: “pauperofilia”
O
ininterrupto crescimento da cidade de São Paulo, tanto económico como físico,
produz uma perversa desigualdade social. João Ferreira, arquiteto e economista defende
que transformar e tornar esse espaço mais igualitário passa por uma mudança de
conduta individual, pressupondo um combate às atitudes que, mesmo de forma velada,
reproduzem uma cultura de intolerância para com os pobres. Para Ferreira,
aquilo o que hoje é celebrado como modernidade é a causa do padrão urbano
excludente. Padrão que não se restringe à cidade de São Paulo, que é apenas o
caso mais evidente e que infelizmente serve de modelo para o resto do país.
As
conclusões estão contidas no artigo “São
Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo 'à Brasileira'”, publicado na
revista Estudos
Avançados (que
aconselhamos a ler na totalidade).
Intolerância
que Ferreira define como resultado de uma sociedade em que predomina a
indiferença. Ele explica: “a exclusão dos
mais pobres produz uma lógica perversa em que as classes dominantes cultivam a
sensação de que a cidade funciona sozinha, ignorando que é um contingente
populacional importante e pobre que a move, mas que tem que desaparecer findo o
serviço”. Não é só indiferente, a cidade também é intolerante: “o desprezo,
a desconsideração pelas condições de vida dos mais pobres e as suas necessidades
são também motivados por políticas e ações bem determinadas, porém veladas. O
que nos remete à sensação de uma espécie de apartheid”.
Políticas
implementadas por um Estado que promove uma urbanização desigual, porque é ele
quem define a disponibilidade dos chamados instrumentos urbanísticos. O seu
papel seria o de garantir uma produção homogénea de infraestruturas públicas,
evitando, assim, a exclusão das parcelas populacionais de menor rendimento. No
entanto, (no Brasil) como explica o autor “confunde-se
o público e o privado na defesa dos interesses das elites, e essa equação
afetou dramaticamente o modelo da (nossa) urbanização”. Teria sido
desenvolvida (no Brasil) uma situação de segregação socioespacial em que a
população mais pobre, sem opção de moradia, se foi “exilar na periferia”.
Embora
causada pelo Estado, a segregação seria legitimada pelas classes dominantes,
que o coagem para que aja em benefício delas. Exerceria assim o que o autor
chama de “racismo à brasileira”, ou
seja, um racismo que existe mas não é confessado, e que nem por isso faz menos
vítimas. Essa intolerância à pobreza é revelada em várias ações, como no caso
de empreendedores de um condomínio de luxo que, incomodados com a vista para
uma favela, acharam por bem ‘estimular’ a saída dos indesejados vizinhos pagando-lhes
R$ 40 mil (€ 17.247,60) por família. E também uma política da Câmara de São
Paulo que se encarrega da ação de ‘limpeza’, oferecendo o ‘cheque de despejo’,
R$ 1,5 mil (€ 646,80) para sair das suas casas, e R$ 5 mil (€ 2.156,00) se a
família fizer a ‘gentileza’ de voltar para o seu Estado de origem.
O
Estado, além de não desenvolver políticas habitacionais que beneficiem os mais
pobres, acaba por os impedir de viver em bairros mais ricos. Isso faria sentido
pelo Estado ser patrimonialista, legitimado pelas classes mais abastadas, e em
que o direito à propriedade está acima do direito à habitação. Uma realidade
perversa em que a desigualdade não ocorre por falta de leis, mas pelo
contrário, é legitimada por elas.
Ferreira
aponta caminhos para reverter essa desigualdade, pois desde a redemocratização
do país os governos comprometidos com as necessidades populares propuseram uma “reforma urbana”, conseguindo pelo menos
inserir essa problemática na agenda política. Um exemplo teria sido a criação
do Ministério das Cidades e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
- embora até hoje não tenham tido quase nenhuma efetividade. Essa dificuldade
em transformar estas propostas em verdadeiras ações ocorreria porque “uma das razões desse impasse está na
dificuldade de transformação do próprio Estado e, em maior escala, do sistema e
das práticas políticas que o legitimam. Uma máquina aperfeiçoada durante
séculos para dificultar qualquer tentativa de transformação da lógica de
produção do espaço urbano desigual não facilita a vida daqueles que participam
de gestões com intervenções verdadeiramente públicas”.
Isabela Palhares
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