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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Um olhar consistente e límpido sobre a pobreza

A quantidade de água que existe hoje é a mesma que existia quando a Terra se formou. O que está a acontecer é que a distribuição da água está a mudar com as alterações climáticas.

O canadiano William Cosgrove foi vice-presidente do Banco Mundial e presidente do Conselho Mundial da Água, sendo considerado um dos maiores especialistas mundiais nas questões relacionadas com este recurso natural.
William Cosgrove é atualmente presidente da empresa Ecoconsult Inc. e consultor para a elaboração do 4º Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Mundial da Água. No dia 15 de junho deu uma conferência na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, sobre "Cenários da Água para um Desenvolvimento Sustentável", no âmbito dos trabalhos do "Think Tank Gulbenkian sobre a Água e o Futuro da Humanidade", uma organização dedicada à reflexão sobre as políticas e os problemas que envolvem este recurso.
Defende que a redução da pobreza no mundo está relacionada com a água. Porquê?
Jimmy Carter, Prémio Nobel da Paz, disse um dia que a fonte da maior parte dos problemas do mundo era a grande diferença entre ricos e pobres. Para ajudar os pobres a sair da pobreza a ONU concebeu os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio até 2015, mas quando olhamos para eles concluímos que não é possível alcançá-los sem água. A água é a chave para um desenvolvimento sustentável equitativo.
Como quantificamos essa pobreza?
Há o conceito de pobreza extrema, onde cada pessoa vive com menos de 1,25 dólares (0,90 euros) por dia. Na África Subsariana isso corresponde a 40% da população e no Sudeste Asiático e Pacífico a 25%. Mas se formos um pouco mais longe e falarmos das pessoas que vivem com apenas dois dólares por dia (1,5 euros), estamos a falar em 75% da população de África Subsariana e do Sul da Ásia e em 50% da população do Sudeste Asiático e Pacífico. É muita gente a viver na pobreza e para acabar com ela é necessária muita água. Para se alcançar o primeiro objetivo da ONU - aumentar os rendimentos de modo a que metade das pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza saia dela - uma das primeiras medidas é aumentar a produtividade da agricultura, o que só pode ser feito com mais água.
O mesmo se passa quanto aos outros Objetivos de Desenvolvimento do Milénio?
Sim. Mas reduzir o número de pessoas com fome de 1.000 milhões para 700 milhões - que mesmo assim ainda é muita gente - é um longo caminho, devido ao recente aumento dos preços dos alimentos. Quanto a outros objetivos da ONU, como melhorar o nível de saúde e reduzir as doenças, promover a igualdade do género, proteger o ambiente, todos eles envolvem o uso de mais água.
A água implica problemas de gestão complexos?
Há problemas de gestão e de governação. A água é usada a nível local, mas quando falamos de águas transfronteiriças (rios, lagos, lençóis freáticos), 40% da população mundial vive em bacias hidrográficas que pertencem a mais do que um país. Portanto tem de haver cooperação internacional nestas bacias para se gerir este recurso. O problema é que as fronteiras políticas e administrativas, mesmo dentro de cada país, não coincidem com as fronteiras naturais que controlam a água. As populações percebem muito bem quais são as fronteiras políticas e administrativas a nível local, regional ou nacional, mas a maior parte das pessoas não sabe quais são as fronteiras naturais da água.
Uma questão global que precisa de políticas globais
A água é então essencial para o desenvolvimento sustentável, tanto nos países ricos como nos pobres?

Obviamente. Um país pobre que tem água pode ser ajudado a satisfazer as suas necessidades através de empréstimos para a construção de infraestruturas. Mas se esse país não tem água suficiente, é necessário um sistema de comércio global que lhe dê vantagens para produzir bens que não necessitem de tanta água. Com a venda desses bens pode então comprar outros que precisam de muita água para ser produzidos, como os alimentos. Portanto, os países pobres que não têm água são um problema global, que precisa de ser resolvido por instituições globais e políticas globais.
As preocupações do público e dos decisores políticos sobre o aquecimento global e a energia são muito maiores do que sobre uma possível crise global da água. Porquê?
Os recursos energéticos têm um preço de mercado, têm um valor, podem ser comprados e vendidos e por isso as pessoas dão-lhes atenção. Na maioria dos casos a água é consumida no pressuposto de que, aconteça o que acontecer, haverá sempre em quantidade suficiente para as necessidades e não haverá problemas. Ora só será assim se a gerirmos bem, porque não há água suficiente em todas as regiões do planeta. Há zonas na Terra que têm água que chegue, outras que por vezes têm água a mais - quando há cheias - ou a menos - quando há secas -, e outras que nunca têm água suficiente para as suas necessidades. É este desequilíbrio que exige uma intervenção internacional e uma gestão global.
A perceção dominante entre a opinião pública é que a água é um recurso renovável?
Globalmente é um recurso renovável, mas a nível regional e local, ou em certos períodos de tempo (época das secas), pode não ser. Neste momento há uma seca na Europa e esta região não vai produzir tantos alimentos como num ano normal, o que significa que tem de os importar de algum lado. Poderá ser do Brasil ou da Ucrânia. Ou mesmo do Canadá, onde o aquecimento global está provocar mais chuvas e melhores colheitas.
O grande problema das alterações climáticas
Há analistas que defendem que o impacto de uma crise na água poderá ser pior do que uma crise climática. Porquê?
Os cientistas que estão a analisar as alterações climáticas usam as subidas de temperatura, porque podem ser medidas, para explicar este fenómeno ao público em geral. Todas as discussões sobre alterações climáticas giram à volta da temperatura, do aquecimento global. Mas o aquecimento global não é, na verdade, o grande problema que resulta das alterações climáticas. O grande problema é a escassez de água, que está relacionada com o ciclo hidrológico e com o aumento da variabilidade na precipitação. Vamos ter cada vez mais inundações e cada vez mais secas, o que criará instabilidade em todo o sistema. E a maior parte desta instabilidade vai acontecer no mundo em desenvolvimento. Se olharmos para o mapa-mundo e procurarmos onde a variabilidade climática está a aumentar é precisamente onde há problemas de falta de água e onde a maior parte dos pobres do mundo vive. É por isso que o Pentágono classifica a segurança do abastecimento de água como um problema global de segurança. Se olharmos para os problemas atuais do Médio Oriente, a sua origem está na capacidade desta região para comprar alimentos, porque não tem água suficiente para os produzir no seu território, estando por isso sujeita aos preços internacionais dos produtos alimentares, que estão neste momento no seu nível mais alto da História.
Está preocupado com o consumo de água na Europa, em especial na região mediterrânica?
Sim. A região mediterrânica é, provavelmente, a primeira região do mundo onde as capacidades já foram ultrapassadas. Há dez anos, por exemplo, o Médio Oriente estava a importar água virtual (gasta na produção de alimentos e outros bens de consumo importados) a um nível que excedia o total do caudal do Rio Nilo. É uma região que já não consegue alimentar a sua população sem importações, o que a torna dependente do mercado mundial de alimentos. A Argélia, por exemplo, importa bens, a maior parte agrícolas, que precisaram de duas vezes a água que o país tem para serem produzidos. Noutras regiões do mundo também há bons exemplos do que significa o consumo de água virtual. No Japão, os bens que são importados precisaram de 4,5 vezes a água que o país tem para serem produzidos.
E quanto ao resto da Europa?
Se continuar a variabilidade climática, alguns países do resto da Europa vão ter também problemas de escassez de água.
O ciclo global da água está a mudar?
A quantidade de água que existe hoje é a mesma que existia quando a Terra se formou. O que está a acontecer é que a distribuição da água está a mudar com as alterações climáticas. Mas para além desta questão, dois fatores estão a provocar a escassez da água: o rápido crescimento da população em certas regiões do mundo, que precisam de mais água por causa do aumento da procura de alimentos e bens de consumo; e o desenvolvimento de regiões que antes eram pobres, porque a sua população começa a ter rendimentos para comprar mais alimentos e bens que consomem água. É um duplo efeito que está a influenciar a escassez de água a nível local em certas regiões do mundo.
Investimentos na água prejudicados pela crise
Os recursos financeiros que estão a ser usados para a recuperação económica da Europa esqueceram os investimentos destinados a evitar uma crise da água?
A crise teve sem dúvida um efeito negativo nesses investimentos. Mas houve um problema. Em 2000 fui um dos autores do relatório sobre a quantidade de dinheiro que seria necessária para investir em infraestruturas de água para responder às necessidades da população mundial. O investimento atual, 11 anos depois, é apenas uma fração desse dinheiro e mesmo nos países ricos a água foi esquecida. Com a crise financeira tornou-se tudo ainda mais difícil porque os governos estão a adiar investimentos nesta área. Uma das esperanças que temos é que os decisores políticos venham a reconhecer que a mitigação e a adaptação às alterações climáticas deve passar pela água, em especial a água que vai ser afetada por essas alterações, o que vai exigir a construção de novas infraestruturas.
Cerca de 70% da água consumida no mundo diz respeito à agricultura, mas há limites para a redução deste consumo através do uso de tecnologias e políticas destinadas a aumentar a eficiência. Estamos perante um problema sem solução?
Não. Há muitas soluções e algumas são tecnológicas. Por exemplo, a dessalinização é viável, talvez ainda não para a agricultura de hoje, mas se os preços dos alimentos aumentarem, o que é expectável, poderá tornar-se mais económico recorrer a este processo, apesar dos custos da energia. Outro exemplo é que há culturas que poderão crescer com água salgada ou mesmo nos oceanos. Uma das coisas que está a ser estudada neste momento é o crescimento de algas na água do mar ou em água salgada para serem usadas na produção de biocombustíveis, o que reduziria a procura de terras agrícolas e culturas para esse fim. Há também muitas tecnologias que estão a ser desenvolvidas, e que são contestadas na Europa, para alterar geneticamente as plantas de modo a serem mais resistentes às doenças e às secas, permitindo elevados níveis de produção.
E quanto às práticas agrícolas?
O uso das melhores práticas agrícolas em regiões que ainda não o fazem nos países em desenvolvimento, pode duplicar ou triplicar os níveis de produtividade atuais. Há, de facto, muitas soluções do lado da produção. Mas também se pode reduzir a procura de alimentos, porque estamos a produzir cada vez mais alimentos que são mais do que suficientes para alimentar todo o mundo. Temos 1,5 mil milhões de pessoas com excesso de peso contra mil milhões subalimentadas. Além disso, as estatísticas mostram que, desde o momento em que as colheitas são feitas até ao consumo dos produtos alimentares, metade do que produzimos é desperdiçado pelo caminho. Portanto, melhorando a cadeia alimentar, a cadeia de produção e de distribuição, é possível reduzir a procura de alimentos. Por outro lado, é possível levar as pessoas a mudar a sua dieta face aos níveis de obesidade a que chegámos, tendo uma vida mais saudável e consumindo menos alimentos, o que significa consumir menos água.
As carências de água nas economias emergentes como a China e a Índia podem ser uma barreira ao desenvolvimento?
Sim. Durante a última década, os chineses começaram a produzir mais alimentos com a mesma quantidade de água que usavam antes. Reconheceram os problemas que têm com a água e começaram a adotar tecnologias mais eficientes na agricultura e noutras áreas, o que é um sinal positivo. A China apenas importa 8% de produtos agrícolas, mas é um país tão grande que um aumento de 1% ou 2% tem um efeito no mercado global que pode ser muito importante. Em parte por causa disso, a China e vários países do Médio Oriente estão a comprar terras noutros países em desenvolvimento, porque assim podem garantir a produção dos alimentos que necessitam fora do seu próprio país. Mas ao mesmo tempo que compram terras compram a água que existe nelas, e estou certo que, muitas vezes, obterem água é mais importante que obterem terra.

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