A quantidade de água que
existe hoje é a mesma que existia quando a Terra se formou. O que está a
acontecer é que a distribuição da água está a mudar com as alterações
climáticas.
O canadiano William Cosgrove foi
vice-presidente do Banco Mundial e presidente do Conselho Mundial da Água,
sendo considerado um dos maiores especialistas mundiais nas questões
relacionadas com este recurso natural.
William Cosgrove é atualmente
presidente da empresa Ecoconsult Inc. e consultor para a elaboração do 4º
Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Mundial da Água. No dia 15
de junho deu uma conferência na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, sobre "Cenários
da Água para um Desenvolvimento Sustentável", no âmbito dos trabalhos do "Think
Tank Gulbenkian sobre a Água e o Futuro da Humanidade", uma organização
dedicada à reflexão sobre as políticas e os problemas que envolvem este recurso.
Defende que a redução da pobreza no mundo está relacionada com a
água. Porquê?
Jimmy Carter, Prémio Nobel da Paz,
disse um dia que a fonte da maior parte dos problemas do mundo era a grande
diferença entre ricos e pobres. Para ajudar os pobres a sair da pobreza a ONU
concebeu os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio até 2015, mas quando
olhamos para eles concluímos que não é possível alcançá-los sem água. A água é
a chave para um desenvolvimento sustentável equitativo.
Como quantificamos essa pobreza?
Há o conceito de pobreza extrema, onde
cada pessoa vive com menos de 1,25 dólares (0,90 euros) por dia. Na África
Subsariana isso corresponde a 40% da população e no Sudeste Asiático e Pacífico
a 25%. Mas se formos um pouco mais longe e falarmos das pessoas que vivem com
apenas dois dólares por dia (1,5 euros), estamos a falar em 75% da população de
África Subsariana e do Sul da Ásia e em 50% da população do Sudeste Asiático e
Pacífico. É muita gente a viver na pobreza e para acabar com ela é necessária
muita água. Para se alcançar o primeiro objetivo da ONU - aumentar os
rendimentos de modo a que metade das pessoas que vivem abaixo do limiar da
pobreza saia dela - uma das primeiras medidas é aumentar a produtividade da
agricultura, o que só pode ser feito com mais água.
O mesmo se passa quanto aos outros Objetivos de Desenvolvimento
do Milénio?
Sim. Mas reduzir o número de pessoas
com fome de 1.000 milhões para 700 milhões - que mesmo assim ainda é muita
gente - é um longo caminho, devido ao recente aumento dos preços dos alimentos.
Quanto a outros objetivos da ONU, como melhorar o nível de saúde e reduzir as
doenças, promover a igualdade do género, proteger o ambiente, todos eles
envolvem o uso de mais água.
A água implica problemas de gestão complexos?
Há problemas de gestão e de
governação. A água é usada a nível local, mas quando falamos de águas
transfronteiriças (rios, lagos, lençóis freáticos), 40% da população mundial
vive em bacias hidrográficas que pertencem a mais do que um país. Portanto tem
de haver cooperação internacional nestas bacias para se gerir este recurso. O
problema é que as fronteiras políticas e administrativas, mesmo dentro de cada
país, não coincidem com as fronteiras naturais que controlam a água. As
populações percebem muito bem quais são as fronteiras políticas e
administrativas a nível local, regional ou nacional, mas a maior parte das
pessoas não sabe quais são as fronteiras naturais da água.
Uma questão global que precisa de políticas globais
A água é então essencial para o desenvolvimento sustentável, tanto nos países ricos como nos pobres?
Obviamente. Um país pobre que tem água pode ser ajudado a satisfazer as suas necessidades através de empréstimos para a construção de infraestruturas. Mas se esse país não tem água suficiente, é necessário um sistema de comércio global que lhe dê vantagens para produzir bens que não necessitem de tanta água. Com a venda desses bens pode então comprar outros que precisam de muita água para ser produzidos, como os alimentos. Portanto, os países pobres que não têm água são um problema global, que precisa de ser resolvido por instituições globais e políticas globais.
A água é então essencial para o desenvolvimento sustentável, tanto nos países ricos como nos pobres?
Obviamente. Um país pobre que tem água pode ser ajudado a satisfazer as suas necessidades através de empréstimos para a construção de infraestruturas. Mas se esse país não tem água suficiente, é necessário um sistema de comércio global que lhe dê vantagens para produzir bens que não necessitem de tanta água. Com a venda desses bens pode então comprar outros que precisam de muita água para ser produzidos, como os alimentos. Portanto, os países pobres que não têm água são um problema global, que precisa de ser resolvido por instituições globais e políticas globais.
As preocupações do público e dos decisores políticos sobre o
aquecimento global e a energia são muito maiores do que sobre uma possível crise
global da água. Porquê?
Os recursos energéticos têm um preço
de mercado, têm um valor, podem ser comprados e vendidos e por isso as pessoas
dão-lhes atenção. Na maioria dos casos a água é consumida no pressuposto de
que, aconteça o que acontecer, haverá sempre em quantidade suficiente para as
necessidades e não haverá problemas. Ora só será assim se a gerirmos bem,
porque não há água suficiente em todas as regiões do planeta. Há zonas na Terra
que têm água que chegue, outras que por vezes têm água a mais - quando há
cheias - ou a menos - quando há secas -, e outras que nunca têm água suficiente
para as suas necessidades. É este desequilíbrio que exige uma intervenção
internacional e uma gestão global.
A perceção dominante entre a opinião pública é que a água é um
recurso renovável?
Globalmente é um recurso renovável,
mas a nível regional e local, ou em certos períodos de tempo (época das secas),
pode não ser. Neste momento há uma seca na Europa e esta região não vai
produzir tantos alimentos como num ano normal, o que significa que tem de os
importar de algum lado. Poderá ser do Brasil ou da Ucrânia. Ou mesmo do Canadá,
onde o aquecimento global está provocar mais chuvas e melhores colheitas.
O grande problema das alterações climáticas
Há analistas que defendem que o impacto de uma crise na água
poderá ser pior do que uma crise climática. Porquê?
Os cientistas que estão a analisar as
alterações climáticas usam as subidas de temperatura, porque podem ser medidas,
para explicar este fenómeno ao público em geral. Todas as discussões sobre
alterações climáticas giram à volta da temperatura, do aquecimento global. Mas
o aquecimento global não é, na verdade, o grande problema que resulta das
alterações climáticas. O grande problema é a escassez de água, que está relacionada
com o ciclo hidrológico e com o aumento da variabilidade na precipitação. Vamos
ter cada vez mais inundações e cada vez mais secas, o que criará instabilidade
em todo o sistema. E a maior parte desta instabilidade vai acontecer no mundo
em desenvolvimento. Se olharmos para o mapa-mundo e procurarmos onde a
variabilidade climática está a aumentar é precisamente onde há problemas de
falta de água e onde a maior parte dos pobres do mundo vive. É por isso que o
Pentágono classifica a segurança do abastecimento de água como um problema
global de segurança. Se olharmos para os problemas atuais do Médio Oriente, a
sua origem está na capacidade desta região para comprar alimentos, porque não
tem água suficiente para os produzir no seu território, estando por isso
sujeita aos preços internacionais dos produtos alimentares, que estão neste
momento no seu nível mais alto da História.
Está preocupado com o consumo de água na Europa, em especial na
região mediterrânica?
Sim. A região mediterrânica é,
provavelmente, a primeira região do mundo onde as capacidades já foram
ultrapassadas. Há dez anos, por exemplo, o Médio Oriente estava a importar água
virtual (gasta na produção de alimentos e outros bens de consumo importados) a
um nível que excedia o total do caudal do Rio Nilo. É uma região que já não
consegue alimentar a sua população sem importações, o que a torna dependente do
mercado mundial de alimentos. A Argélia, por exemplo, importa bens, a maior
parte agrícolas, que precisaram de duas vezes a água que o país tem para serem
produzidos. Noutras regiões do mundo também há bons exemplos do que significa o
consumo de água virtual. No Japão, os bens que são importados precisaram de 4,5
vezes a água que o país tem para serem produzidos.
E quanto ao resto da Europa?
Se continuar a variabilidade
climática, alguns países do resto da Europa vão ter também problemas de
escassez de água.
O ciclo global da água está a mudar?
A quantidade de água que existe hoje é
a mesma que existia quando a Terra se formou. O que está a acontecer é que a
distribuição da água está a mudar com as alterações climáticas. Mas para além
desta questão, dois fatores estão a provocar a escassez da água: o rápido
crescimento da população em certas regiões do mundo, que precisam de mais água
por causa do aumento da procura de alimentos e bens de consumo; e o
desenvolvimento de regiões que antes eram pobres, porque a sua população começa
a ter rendimentos para comprar mais alimentos e bens que consomem água. É um
duplo efeito que está a influenciar a escassez de água a nível local em certas
regiões do mundo.
Investimentos na água prejudicados pela crise
Os recursos financeiros que estão a ser usados para a recuperação
económica da Europa esqueceram os investimentos destinados a evitar uma crise
da água?
A crise teve sem dúvida um efeito
negativo nesses investimentos. Mas houve um problema. Em 2000 fui um dos
autores do relatório sobre a quantidade de dinheiro que seria necessária para
investir em infraestruturas de água para responder às necessidades da população
mundial. O investimento atual, 11 anos depois, é apenas uma fração desse
dinheiro e mesmo nos países ricos a água foi esquecida. Com a crise financeira
tornou-se tudo ainda mais difícil porque os governos estão a adiar
investimentos nesta área. Uma das esperanças que temos é que os decisores
políticos venham a reconhecer que a mitigação e a adaptação às alterações
climáticas deve passar pela água, em especial a água que vai ser afetada por
essas alterações, o que vai exigir a construção de novas infraestruturas.
Cerca de 70% da água consumida no mundo diz respeito à
agricultura, mas há limites para a redução deste consumo através do uso de
tecnologias e políticas destinadas a aumentar a eficiência. Estamos perante um
problema sem solução?
Não. Há muitas soluções e algumas são
tecnológicas. Por exemplo, a dessalinização é viável, talvez ainda não para a
agricultura de hoje, mas se os preços dos alimentos aumentarem, o que é
expectável, poderá tornar-se mais económico recorrer a este processo, apesar
dos custos da energia. Outro exemplo é que há culturas que poderão crescer com
água salgada ou mesmo nos oceanos. Uma das coisas que está a ser estudada neste
momento é o crescimento de algas na água do mar ou em água salgada para serem
usadas na produção de biocombustíveis, o que reduziria a procura de terras
agrícolas e culturas para esse fim. Há também muitas tecnologias que estão a
ser desenvolvidas, e que são contestadas na Europa, para alterar geneticamente
as plantas de modo a serem mais resistentes às doenças e às secas, permitindo
elevados níveis de produção.
E quanto às práticas agrícolas?
O uso das melhores práticas agrícolas
em regiões que ainda não o fazem nos países em desenvolvimento, pode duplicar
ou triplicar os níveis de produtividade atuais. Há, de facto, muitas soluções
do lado da produção. Mas também se pode reduzir a procura de alimentos, porque
estamos a produzir cada vez mais alimentos que são mais do que suficientes para
alimentar todo o mundo. Temos 1,5 mil milhões de pessoas com excesso de peso
contra mil milhões subalimentadas. Além disso, as estatísticas mostram que,
desde o momento em que as colheitas são feitas até ao consumo dos produtos
alimentares, metade do que produzimos é desperdiçado pelo caminho. Portanto,
melhorando a cadeia alimentar, a cadeia de produção e de distribuição, é
possível reduzir a procura de alimentos. Por outro lado, é possível levar as
pessoas a mudar a sua dieta face aos níveis de obesidade a que chegámos, tendo
uma vida mais saudável e consumindo menos alimentos, o que significa consumir
menos água.
As carências de água nas economias emergentes como a China e a
Índia podem ser uma barreira ao desenvolvimento?
Sim. Durante a última década, os
chineses começaram a produzir mais alimentos com a mesma quantidade de água que
usavam antes. Reconheceram os problemas que têm com a água e começaram a adotar
tecnologias mais eficientes na agricultura e noutras áreas, o que é um sinal
positivo. A China apenas importa 8% de produtos agrícolas, mas é um país tão grande
que um aumento de 1% ou 2% tem um efeito no mercado global que pode ser muito
importante. Em parte por causa disso, a China e vários países do Médio Oriente
estão a comprar terras noutros países em desenvolvimento, porque assim podem
garantir a produção dos alimentos que necessitam fora do seu próprio país. Mas
ao mesmo tempo que compram terras compram a água que existe nelas, e estou
certo que, muitas vezes, obterem água é mais importante que obterem terra.
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