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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Fim de citações… que reiniciam em 2015

No encontro literário na Póvoa de Varzim, apelou-se “a um manguito universal a quem nos oprime” e riu-se muito. Foi o ano com maior número de leitores.
Os escritores vivem uma luta constante “entre o espírito lúcido e o espírito louco”, diz Lídia Jorge. O primeiro é o que os faz “ligar o despertador, levantar-se, despachar-se rapidamente, cumprir prazos e evitar fazer má figura”. O segundo é “descomprometido, livre e dá oportunidade ao acaso”.
Com os que não escrevem também é assim, disse a escritora. “Mas connosco, os escritores, o conflito é maior, porque o espírito louco está sempre a contrariar o lúcido”, explicou a autora de ‘A Costa dos Murmúrios’, depois de participar na 1.ª mesa das Correntes d’Escritas, encontro anual de escritores de expressão ibérica na Póvoa de Varzim e cuja 15.ª edição terminou no sábado. 3 dias de sala cheia (600 lugares sentados… em cadeiras) e filas à porta (sem registo de lotação ou posição).
Mais “espíritos loucos” partilharam a mesa inaugural, ‘Pensamentos não são correntes de ninguém’, embora alguns conhecidos sobretudo pela lucidez, como Eduardo Lourenço, que ali falou de Portugal, da Europa e de si próprio e defendeu que a “literatura serve para sarar as feridas da vida”.
Quando quase todos os oradores se mostravam zangados com o mundo e principalmente com Portugal, o ensaísta e pensador falou sabiamente em “paciência” e “tempo”. Reconhecendo que “não é por acaso que o tema dos vampiros se tornou moda”, pois “são os emissários da morte e é como se estivéssemos a viver uma espécie de Apocalipse em directo”, Eduardo Lourenço acredita que, “com tempo e alguma sorte, possamos sair desta espécie de atoleiro em que estamos mergulhados neste momento”. É possível porque, diz, “isto aconteceu outras vezes na nossa história; nós, um país tão pequeno como o nosso, uma barca tão frágil como a nossa, mas que foi a primeira que saiu desta Europa para percorrer o mundo”.
Falando sobre ele próprio, comoveu um auditório a transbordar de gente na quinta-feira: “Eu sei o que é estar à beira do abismo. Estou olhando para ele. Ele está próximo, o meu próprio fim.” Sem autocomiseração, concluiu: “O que é válido para os indivíduos é válido para aquilo que é maior que nós.” Falava dos países, da história do mundo e da eternidade. Foi difícil à audiência do centro de congressos do Hotel Axis Vermar parar de bater palmas ao autor de ‘Labirinto da Saudade’ (1978), a obra que continua a ser a que mais gente relaciona com Eduardo Lourenço.
Frontal (e algo zangado) esteve João de Melo, autor de ‘Gente Feliz com Lágrimas’ (1988), que disse: “Não sei há quantos anos ouço falar de crise – a ideológica, a sentimental, a artística, a literária; e também a social, a económica e a financeira, a laboral, a política, a mundial ou universal. (…) Nascemos portugueses, mas para sobreviver a um permanente e absoluto estado de crise, em Portugal.” O escritor açoriano diz que em Portugal “já não acontece nada”, sente “uma presença estranha” e não percebe “por que motivo as coisas deixaram de ser nossas”. E acrescenta: “Hoje, em Portugal, é Deus quem parte e reparte com o Diabo, ficando este com a melhor parte.” Mas, com ironia, assume: “Não posso nem devo queixar-me de um país que já não existe.”
Helder Macedo, além de dizer que “um escritor não deve ser chato”, apelou “a um manguito universal a quem nos oprime”, referindo-se aos governantes portugueses.
Ao 3.º dia, conforme o programa, foi a loucura maior. O painel que reuniu Carlos Quiroga, Joana Bértholo, Manuel da Silva Ramos, Manuel Jorge Marmelo, Miguel Sousa Tavares, Ondjaki e Rui Zink, numa moderação de Michael Kleger, na noite de sexta-feira, foi hilariante. Não porque o assunto não fosse sério – o tema era ‘Cada livro é a antologia corrente da existência’ – mas pela atmosfera divertida que se criou. Mérito do moderador e sobretudo do “espírito louco” de Manuel da Silva Ramos, autor de ‘Pai, Levanta-te’, ‘Vem Fazer-me Um Fato de Canela’.
Ali contou, entre vários episódios insólitos, como durante um ano fez chegar um carro funerário à casa de um crítico que maldissera um título seu. Todos os dias, comunicava a sua morte e pedia que o fossem buscar à morada onde vivia. “Um dia parei e emigrei”, concluiu, perante uma audiência com necessidade de respirar entre várias gargalhadas.
Citação séria, mas não fúnebre, de Miguel Sousa Tavares, que fez parte deste painel: “As histórias e as personagens são para mim o coração, o sangue e o sistema circulatório de um romance. Como aliás o são na vida. (…) Os grandes romances, do meu ponto de vista, são aqueles em que um escritor consegue escrever silêncio no meio das palavras. (…) As histórias, a maneira como aparecem ao escritor, vindas aparentemente do nada, são um milagre e um mistério que vários livros depois ainda não consigo decifrar e menos ainda antecipar. (…) Não acredito que cada livro, romance, seja apenas a antologia corrente da existência. É muito mais do que isso.
Rui Zink, que lançou nas Correntes d’Escritas ‘A Metametamorfose e Outras Fermosas Morfoses’ e dizia dar um bom dinheiro a quem não gaguejasse ou se engasgasse a dizer o título do livro, terminou assim a sua apresentação: “Mia Couto inventa palavras que ouve no machimbombo, em Moçambique, eu invento palavras que oiço em São Bento. É uma coisa bonita. Há uns tempos houve um senhor que teve um problema com o professor doutor Presidente da República. Parece que lhe chamou ‘palhaço’ (não, não foi o Ondjaki). E vi logo uma palavra fantástica, que podia ser a gralha do ano, que é o Presidente professor doutor Cavaco Silva mora no ‘Palhácio’ de Belém.”
Para concluir, invocou um título divulgado há dias, sobre a situação na Coreia do Norte, “Pensava que me iam cortar a mão, mas foi só um dedo. Fiquei grato”. Variantes de Rui Zink: “Pensava que me iam despachar, mas fui só despedido. Fiquei grato” e “pensava que me iam humilhar, mas afinal era só uma praxe”. Fim de conversa sobre “espíritos loucos” e “lúcidos”.

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