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sábado, 1 de março de 2014

Já lá vão 2 anos e ainda continuamos no absurdo…

Embora seja incompreensível, emprenhou-se nos hábitos sociais: há anos que despojamos a coletividade e que arruinamos a democracia, denuncia Ingo Schulze. O escritor alemão divulga as suas dicas para restabelecer o bom senso. Excertos.
Já não escrevia artigos há cerca de 3 anos, pela simples razão de que já não sabia o que escrever. Salta tudo à vista: o desmoronamento da democracia, a crescente polarização económica e social entre ricos e pobres, o fracasso do Estado social, a privatização e, por conseguinte, a comercialização de todos os aspetos da vida, e assim sucessivamente.
Quando, dia após dia, o absurdo nos é apresentado como algo natural, é normal que acabemos, mais cedo ou mais tarde, por nos sentirmos doentes e assumirmos um comportamento desviante. Segue-se um resumo de algumas considerações que me parecem importantes:
1. Falar de atentado à democracia é um eufemismo. Uma situação na qual a minoria de uma minoria está legalmente autorizada a prejudicar gravemente o interesse geral em nome do enriquecimento pessoal, define-se como pós-democrático. O culpado não é mais do que a própria coletividade, incapaz de eleger representantes aptos para defender os seus interesses.
2. Todos os dias é-nos repetido que os governos devem “recuperar a confiança dos mercados”. Por “mercados”, entende-se principalmente as bolsas e os mercados financeiros, por outras palavras, os atores da esfera financeira que especulam por conta de outrem ou por interesse próprio, com o intuito de obter o maior lucro possível. Foram estes que despojaram a coletividade de montantes astronómicos. E, agora, deveriam os representantes supremos do povo lutar para recuperar a sua confiança?
3. Indignámo-nos merecidamente com a conceção de Vladimir Putin de uma democracia “dirigida”. Mas por que razão não foi Angela Merkel obrigada a demitir-se na altura em que esta falava de “democracia conforme aos mercados”?
4. Favoráveis à queda do bloco de Leste, certas ideologias transformaram-se em hegemonias, e a sua influência foi tal que pareceu natural. Considerada um fenómeno positivo em todos os aspetos, a privatização serve de exemplo. Tudo o que permanecia nas mãos da coletividade era considerado ineficaz e contraditório aos interesses do cliente. Deste modo, vimos emergir um clima que iria, mais cedo ou mais tarde, privar a coletividade do seu poder.
5. Outra ideologia cujo sucesso também foi retumbante: o crescimento. “Sem crescimento, não há nada”, proferiu a chanceler há já alguns anos. Não se pode falar de crise sem mencionar estas duas ideologias.
6. A língua utilizada pelos responsáveis políticos que alegadamente nos representam já não está em sintonia com a realidade (vivi uma situação similar na RDA). É a língua das certezas, que deixou de ser posta à prova na vida real. A política não passa hoje de um meio, um fole de ferreiro cuja razão de ser é atiçar o crescimento. O cidadão está reduzido ao papel de consumidor. Contudo, o crescimento em si não significa nada. O ideal para a sociedade seria um playboy que consumisse o máximo de coisas num período de tempo mínimo. Uma guerra poderia desencadear um considerável aumento do crescimento económico.
7. As questões simples: “Quem tira partido disso”, “Quem lucra com isso”? são atualmente consideradas inconvenientes. Não estamos todos no mesmo barco? Quem se interroga é visto como o apóstolo da luta das classes. A polarização social e económica da sociedade é fruto de um tumulto de evocações, segundo os quais teremos todos os mesmos interesses. Basta atravessar Berlim. Nos bairros de luxo, os únicos edifícios que não foram renovados são, normalmente, as escolas, as creches, os lares de idosos, as piscinas ou os hospitais. Nos bairros chamados “problemáticos”, os edifícios públicos não renovados são menos frequentes. O nível de pobreza é avaliado com base nas cáries da dentição. Hoje, ouve-se muitas vezes o discurso demagógico que consiste em dizer que vivemos todos acima dos nossos meios, que fomos todos gulosos.
8. Os nossos eleitos projetaram e continuam a projetar sistematicamente a coletividade contra a parede ao privá-la das suas receitas. A taxa máxima de tributação alemã foi reduzida de 53% para 42% pelo governo de Schröder, e o imposto sobre as sociedades foi praticamente dividido em 2 entre 1997 e 2009, fixando-se nos 29,4%. Logo, ninguém deveria ficar surpreendido por ouvir dizer que os cofres estão vazios, quando o nosso PIB aumenta de ano para ano.
9. Vou contar-vos uma história: o que outrora nos era descrito como uma divergência profunda entre a Alemanha de Leste e de Oeste é-nos hoje apresentado como uma disparidade radical entre os países. No passado mês de março, estava no Porto, em Portugal, a apresentar a tradução de um dos meus livros. De um momento para outro, uma questão proveniente do público perturbou o ambiente, até então amigável e interessado. De repente, não passávamos de alemães e portugueses sentados frente a frente a olhar-se com desconfiança. A questão era desagradável: será que não tínhamos a sensação, quer dizer, será que eu, enquanto alemão, não tinha a sensação de concretizar com o euro o que não tínhamos conseguido concretizar outrora com os nossos panzers (tanques)? No público, ninguém o censurou. E, como era de esperar, reagi instintivamente, isto é, enquanto alemão: magoado, respondi que ninguém era obrigado a comprar um Mercedes, e que os portugueses deviam considerar-se felizes por obter créditos mais competitivos do que no setor privado. Após proferir estas palavras, ouvi a voz dos meios de comunicação social alemães.
Durante a confusão que seguiu as minhas afirmações, caí finalmente em mim. E como tinha o micro na mão, balbuciei no meu inglês macarrónico que a minha reação tinha sido tão absurda como a deles, e que caímos todos na mesma asneira ao defender instintivamente as cores da nossa nação, como no futebol. Como se o problema derivasse dos alemães e dos portugueses, e não das disparidades entre ricos e pobres, e portanto daqueles que, tanto em Portugal como na Alemanha, estão na origem desta situação e tiram proveito dela.
10. Estaríamos numa democracia se a política, através dos impostos, do direito e dos controlos, interviesse na estrutura económica existente e obrigasse os atores dos mercados a seguir uma certa via compatível com os interesses da coletividade. As questões que convém colocar são simples: “Quem tira partido disso”? “Quem lucra com isso”? Será vantajoso para a coletividade? O que equivale, no fim de contas, a questionar-nos o seguinte: Que sociedade pretendemos? Eis o que seria, na minha opinião, a democracia.
Termino aqui. Poderia falar-vos do resto, de um professor que confessou reconciliar-se com a visão do mundo que tinha aos 15 anos, de um estudo da escola politécnica de Zurique, que estudou a interpenetração das empresas para chegar ao número 147 – 147 grupos que partilham o mundo, e cujas 50 maiores potências são bancos e seguradoras, poderia também muito bem dizer-vos que convém reconciliar-se com o bom senso e encontrar pessoas que partilham o mesmo ponto de vista que nós, porque não podemos ser os únicos a falar uma língua. E dir-vos-ia que voltei a ter vontade de abrir a boca.
27 de janeiro de 2012

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