O golpe de teatro de Cavaco Silva – 10-07-2013
Numa assentada, o Presidente da República transformou o Governo de Passos Coelho num governo de gestão e decidiu tomar o poder. É a conclusão que se pode extrair de um discurso em que Cavaco Silva acabou, de facto, e inesperadamente por convocar eleições antecipadas.
O Presidente responsabilizou inequivocamente a maioria pela crise da semana passada. Fê-lo ao falar nos efeitos do que se passou. Mas fê-lo sobretudo ao não deixar uma palavra sobre a solução apresentada por Passos Coelho e Paulo Portas.
O Governo PSD-CDS é um governo precário. A remodelação pode avançar, mas já não tem sentido. Não tem a confiança do Presidente.
Disse apenas que o Governo está em plenitude de funções. Mas a confiança no Governo nunca foi invocada para justificar a decisão de não convocar eleições agora: esses motivos foram o Orçamento, a troika e o facto de ele considerar que do acto eleitoral não sairia uma clarificação política.
O Presidente impôs um acordo entre os três partidos – do qual fará parte a marcação de um calendário eleitoral. Afirmou que designará uma personalidade de prestígio para mediar o diálogo.
E disse, sem margem para dúvidas que, “sem a existência desse acordo, encontrar-se-ão naturalmente outras soluções no quadro do nosso sistema jurídico-constitucional”.
É a frase que vale a pena citar. Porque significa que ele está disposto a avançar para um governo de iniciativa presidencial.
Cavaco Silva encerrou a crise dos golpes de teatro com um golpe de teatro maior do que todos os outros.
Um golpe de teatro em diferido. Sem precedente na história democrática.
Com uma única certeza: o Presidente decidiu tomar o poder.
Da salvação nacional à salvação do Governo – 21-07-2013
"Não tendo sido possível alcançar um compromisso de salvação nacional, considero que a melhor solução alternativa é a continuação em funções do actual Governo, com garantias reforçadas de coesão e solidez da coligação partidária até ao final da legislatura", afirmou o Presidente, que a 10 de julho propôs o diálogo entre os partidos, mas nada disse da anunciada remodelação do Governo.
Por detrás da decisão que o Presidente da República anunciou de dar continuidade ao governo está um mandato muito claro para o executivo remodelado, que deverá ter lugar nas próximas horas.
Paulo Portas surge como vice-primeiro-ministro, Pires de Lima como ministro da Economia, e Moreira da Silva fica com a pasta da Agricultura. A posse pode ser na quarta-feira ou quinta-feira.
Começo por dizer que defino-me como um patriota e um institucionalista: preservo a respeitabilidade e a dignidade das instituições políticas da República Portuguesa acima de tudo. Sobretudo, sou, até nas minhas posições teóricas académicas, um defensor da relevância da actuação política do Presidente da República, contra um entendimento (maioritário) restritivo dos poderes presidenciais. Logo, eu faço num esforço para preservar a imagem que os portugueses têm da instituição Presidência da República - da instituição, não do titular que conjunturalmente exerce o cargo de Presidente da República. Isto para dizer que quando critico o Presidente da República não o faço de ânimo leve - faço-o porque a minha função aqui é comentar a actualidade de forma objectiva, livremente, interpretando os factos políticos que vão sucedendo. A verdade é que é impossível não criticar Cavaco Silva - Cavaco é um Presidente profundamente inconsequente, para não dizer (como muitos dizem) insignificante. Digo isto com muita pena: eu apoiei Cavaco Silva convictamente em 2006 e depois, em 2011, apoiei-o com algumas reservas - mas sobretudo tenho pena porque Portugal precisava de um Presidente da República forte, com credibilidade e margem de manobra para se apresentar como a "válvula de escape" do sistema político. A verdade é que Cavaco Silva, ontem, conseguiu a proeza de se desmentir e negar a si próprio. Ou seja, o Presidente da República desmentiu e desautorizou...Cavaco Silva! Dizia-se que só havia uma pessoa em Portugal que confiava em Cavaco Silva - que era Cavaco Silva. Hoje, não há ninguém que confie no Presidente da República.
Com efeito, o Presidente da República começou por explicar, no discurso de ontem, as razões pelas quais não aceitou a remodelação governamental proposta por Passos Coelho e Paulo Portas, realçando que estava convicto de que os 3 partidos chegassem a um entendimento. Só este facto já é preocupante - confirma que o Presidente da República de Portugal não tem qualquer noção da realidade. Era evidente que o acordo era quase a quadratura do círculo. Cavaco Silva tentou desresponsabilizar-se de uma situação que ele criou, que agravou a instabilidade política e que serviu apenas para que tentasse reescrever a História num sentido mais favorável. No fundo, Cavaco Silva tentou a velha táctica que foi a base da sua carreira política: a divisão entre os "políticos" e ele próprio, o responsável Professor, que não é político, que só se preocupa com os superiores interesses de Portugal e não entra em politiquices. Ora, ficou provado ontem que Cavaco Silva é o político mais politiqueiro: não se importou de prolongar a crise política para que possa, um dia, escrever nas suas memórias que revelou um tremendo sentido de Estado.
E reparem na forma subtil como Cavaco Silva tentou "lavar as mãos" de toda esta situação: afirmou que o acordo entre os 3 partidos é inevitável. Pode demorar mais um mês, menos um mês, mas irá certamente acontecer. A realidade assim o obrigará. Ou seja, Cavaco Silva, no fundo, afirma que os partidos políticos não estão a ver correctamente o filme, não estão a perceber nada - e que a história lhe dará razão. É uma forma muito airosa de Cavaco Silva maquilhar a derrota monumental que sofreu. Pelo contrário, a partir de agora, ao invés do que dizem muitos comentadores que viram nas negociações o fim das tensões entre PS e PSD, podendo agora os 2 partidos chegar a acordo sobre várias matérias, os conflitos entre PS e PSD serão ainda mais intensos - a partir de agora, não será possível chegar a qualquer entendimento. António José Seguro, mal ou bem, escolheu um caminho - e não poderá, se quiser afirmar a sua liderança, ter tergiversações. Logo, mais do que nunca, os consensos serão impossíveis na vida política portuguesa. Graças a Cavaco Silva.
Por último -por hoje - o que foi verdadeiramente lamentável foi o anúncio feito pelo Presidente Cavaco Silva de que o Parlamento irá apresentar uma moção de confiança ao Governo. Ora, é um facto inédito na vida política portuguesa, um Presidente da República anunciar uma acção futura do Parlamento! Trata-se, sem dúvida, de um desrespeito institucional grave - e coloca o Governo e a Assembleia da República na tutela do Presidente da República! Por que razão Cavaco Silva teve este gesto, ele que é um institucionalista, supostamente? Porque Cavaco Silva, no seu íntimo, sabe que perdeu em toda a linha. E que a sua autoridade e o seu prestígio foram colocados em causa pelos partidos. Consequentemente, o anúncio da moção de confiança foi uma demonstração de força e de autoridade política do Presidente, que, a partir de agora, terá de ser muito mais interventivo e participar na política ordinária. Convençamo-nos: Cavaco Silva não tem margem de recuo. De qualquer forma, ser o Presidente da República a anunciar uma moção de confiança a apresentar pelo Parlamento é um precedente grave. Certamente que Assunção Esteves lhe deveria citar Simone de Beauvoir.
João Lemos Esteves
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