Adoção
de medidas da troika transforma o país novamente em plataforma de exportações
de bens de consumo não duráveis.
Ruy Braga
O
aprofundamento da crise económica mundial e a reprodução das políticas de
austeridade impostas pela troika, promoveram o aumento da pobreza na Grécia, em
Portugal e na Espanha, numa escala alarmante. Notícias sobre o ressurgimento da
fome nestes países resgataram dos livros de história um fantasma que parecia
completamente exorcizado num continente cuja promessa de unidade política com
proteção social seduziu há pouco mais de uma década forças políticas
progressistas pelo mundo afora.
O
caso português é emblemático da totalidade da crise e dos seus desdobramentos
sobre o mundo do trabalho europeu. Entre 2008 e 2012, o PIB da Grécia recuou
20%, o de Portugal 7% e o da Espanha 4%. Objetivamente, entre as economias mais
atingidas pela crise, a portuguesa está a meio caminho entre o colapso grego e
a esperança de recuperação espanhola. Além disso, tendo em vista a influência
direta do ex-primeiro-ministro lusitano, José Manuel Durão Barroso, atual
presidente da Comissão Europeia, sobre o Ministro das Finanças, Vítor Gaspar,
seu antigo assessor e ex-funcionário do Banco Central Europeu, Portugal
transformou-se num autêntico laboratório vanguardista para as experiências de
ajuste executadas em diferentes ritmos no sul da Europa.
Na
realidade, trata-se de uma agressiva política de cortes dos gastos públicos com
efeitos devastadores sobre o nível de vida das famílias trabalhadoras. Apenas
para citar 2 exemplos, em setembro do ano passado, o primeiro-ministro
português, Pedro Passos Coelho, anunciou o aumento da contribuição dos
trabalhadores para o sistema de segurança social (TSU) de 11% para 18%, ao
mesmo tempo em que desonerava a contribuição patronal.
Os
ataques aos direitos trabalhistas, sintetizados no novo código do trabalho
português aprovado em agosto de 2012, são seguidos pela política de cortes
salariais e pela demissão em massa – ou reforma compulsória – de inúmeros
grupos de trabalhadores mais velhos e mais experientes em termos políticos e
sindicais.
Apenas
para ilustrar: em março deste ano, os estivadores do porto de Lisboa receberam
uma carta a informar que os seus salários passariam de 1.700 euros por mês para
550 euros.
O
objetivo final desta política é, não apenas capitalizar os bancos e
restabelecer a taxa de lucro das empresas através de uma derrota histórica dos
trabalhadores lusitanos e do decréscimo do custo unitário da força de trabalho,
mas transformar a estrutura social portuguesa numa plataforma de exportações de
bens de consumo não duráveis. Isto representa um flagrante recuo em relação ao
esforço nacional, associado e tardio, vale lembrar, desde a década de 1960, pelo
menos, de industrializar Portugal conforme os moldes do fordismo
semiperiférico.
De
facto, a financeirização da economia tem perseguido este objetivo: na suposta
impossibilidade de competir com os manufaturados chineses, os diferentes países
semiperiféricos devem ser reinseridos em condições socialmente desastrosas na
nova divisão internacional do trabalho. Enquanto existe, hoje, 1.400.000
desempregados em Portugal, o lucro dos principais grupos empresariais
exportadores (EDP, Galp, Mota Engil, Grupo Melo e Lactogal, entre outros)
aumentou nos últimos 3 anos. Isto revela a natureza regressiva do capitalismo
globalizado: de alternativa ao capitalismo neoliberal estadunidense, a União
Europeia transformou-se num modelo de involução social a ser evitado.
E
tratando-se de reviravoltas históricas, não há como não nos lembrarmos daquela
afamada passagem do Manifesto comunista onde Marx e Engels afirmam: “Tudo que é sólido e estável volatiliza-se,
tudo que é sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar
com sobriedade e sem ilusões a sua posição na vida”.
Para
115.000.000 de trabalhadores em risco de pobreza e de exclusão social na Europa
em 2010, a atual ditadura das finanças significou a dolorida dessacralização da
época burguesa.
Quais
os efeitos da combinação de uma política de ajuste estrutural apoiada sobre a “austeridade fiscal” com uma política de
reestruturação do trabalho baseada na acumulação flexível sobre os
trabalhadores? Segundo dados divulgados recentemente pelo instituto estatístico
da União Europeia, o Eurostat, o número de portugueses vivendo em risco de
pobreza e de exclusão social chegou, em 2010, aos 2.700.000, isto é, 25,4% da
população total do país.
Em
consequência, os centros sociais de Portugal que oferecem comida e abrigo estão
superlotados. Em suma, o país foi conduzido a uma situação na qual a população
trabalhadora se aproxima aceleradamente do limiar que define o “precariado”, isto é, uma condição
proletária plasmada, por um lado, pelo aumento da exploração económica e, por
outro, pelo risco permanente da exclusão social.
Conforme
os padrões portugueses, essa condição social encontra uma tradução monetária,
ou seja, viver com menos de 434 euros (1.190 reais) por mês. Trata-se do valor limítrofe do
pauperismo em Portugal. Em 2010, 1.200.000 de cidadãos portugueses sobreviviam
com um rendimento inferior a esta. Estamos a falar em mais de 11% da população
do país, tendo aumentado 12% em relação a 2009. Ou seja, ao aplicar
obedientemente as políticas propugnadas pela troika, o governo português
empurrou mais 150.000 dos seus cidadãos rumo ao abismo social. Não é de se
espantar que tanto José Sócrates, quanto o seu sucessor, Pedro Passos Coelho,
desfrutem de popularidade tão raquítica.
No
Brasil, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República
entende que a chamada “nova classe média”
seria formada por aqueles cuja renda está entre 291 (109 euros) e 1.019 reais (383
euros) mensais. Ou seja, estamos abaixo da linha da pobreza em Portugal. Uma
comparação entre os custos de vida em São Paulo (12ª cidade mais cara do mundo)
e Lisboa (108ª), apenas serviria para adicionar injúria à ofensa. Além da
conclusão de que os padrões portugueses para contar os pobres são muito mais
realistas do que os brasileiros, esta comparação grosseira leva-nos a outra
ponderação. E nisso, somos de facto imbatíveis. A maneira claramente otimista
como encaramos o nosso futuro.
Com
o mercado de trabalho aquecido, tornou-se usual encontrarmos casais onde ambos
estão empregados e recebem juntos 2.000 reais (750 euros) mensais.
Frequentemente, provêm de experiências de informalidade, tendo conquistado um
lugar ao sol no mercado de trabalho formal: discreto, porém, efetivo, progresso
social. É de se esperar que esse casal olhe para o futuro com uma expectativa
otimista. No caso de Portugal, milhares de famílias trabalhadoras que foram
seduzidas pela promessa da prosperidade com proteção social encaram atualmente
o abismo.
É
claro que diferentes perceções da trajetória ocupacional futura alteram a
avaliação política sobre a situação presente. Basta considerarmos a popularidade
dos governos de Pedro Passos Coelho e de Dilma Rousseff para obtermos uma prova
disso.
No
entanto, uma questão objetiva emerge da comparação com a atual crise europeia:
o governo brasileiro deliberadamente subestimou a magnitude e a profundidade da
nossa pobreza em benefício de uma ideologia conservadora cuja capacidade de
convencimento se volatiliza diante do mínimo escrutínio crítico. Como diriam
Marx e Engels, ao colherem lições da nova época burguesa, é necessário encarar
com “sobriedade e sem ilusões a nossa
posição na vida”. Caso contrário, o otimismo em excesso poderá bloquear a nossa
perceção do perigo que se avizinha.
Ruy Braga, professor do
Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Cenedic (Centro de Estudos
dos Direitos da Cidadania) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma
sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A
nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial
(São Paulo, Xamã, 2003). Texto publicado originalmente no Blog da Boitempo.
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