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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Para entendermos a desmontagem (em curso) da legislação social protetora do trabalho…

O sociólogo Ricardo Antunes destaca-se pelas suas pesquisas sobre as condições dos trabalhadores e as dimensões da reestruturação produtiva no capitalismo global.
Ricardo Antunes*, entrevistado por Lejeune Mato Grosso de Carvalho
“Sem Direito ao Trabalho/Sem Direito à Indignação”
de Mário Ribeiro Martins, o Mártio
A entrevista, elaborada com a cooperação do colega sociólogo Sérgio Sanandaj Mattos, também colaborador desta publicação, é com um dos mais renomados sociólogos brasileiros, Ricardo Antunes.
Você tem discutido as mudanças no mundo do trabalho. Frequentemente refere-se, entre outros aspectos, à precarização e à diversificação da força de trabalho. Comente as rápidas transformações e os seus consequentes efeitos na dinâmica social.
As formas atuais de valorização do capital trazem embutidos novos modos de geração da mais valia (quer sob a forma absoluta e/ou relativa), ao mesmo tempo em que expulsam da produção uma infinitude de trabalhos que se tornam sobrantes, descartáveis e cuja função passa a ser a de expandir a bolsa de desempregados, deprimindo ainda mais a remuneração da força de trabalho, pela via da retração do valor necessário à sobrevivência dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Em plena eclosão da mais recente crise global, este quadro amplia-se ainda mais e faz-nos presenciar uma corrosão ainda maior do trabalho contratado e regulamentado, de que são exemplos os trabalhos terceirizados (com a sua enorme gama e variedade), tais como o "falso cooperativismo", o "empreendedorismo", o "trabalho voluntário", que é de facto compulsório, pois quem não o faz não mais encontra emprego etc.
Estas modalidades de trabalho aumentam as formas geradoras do valor (ainda que sob a aparência do não valor), aumentando novos e velhos mecanismos de intensificação e de exploração do trabalho. Como, entretanto, o capital não pode valorizar-se, isto é, gerar mais-valia, sem realizar alguma forma de interação entre trabalho vivo e trabalho morto (máquinas e equipamentos), busca incessantemente o aumento da produtividade do trabalho, ampliando os mecanismos de extração do sobretrabalho em tempo cada vez menor, através da ampliação do trabalho morto corporificado no maquinário tecnocientífico-informacional. Isto sem mencionar, também, a crescente importância dos trabalhos de tecnologias de informação e comunicação no processo de valorização do capital.
Similar é o caso do "empreendedorismo", que cada vez mais se configura como forma oculta de trabalho assalariado e que permite o proliferar das distintas formas de flexibilização salarial, de horário, funcional ou organizativa.
Modalidades de trabalho» Estamos a vivenciar a erosão do trabalho contratado e regulamentado, dominante no século XX, e a ver a sua substituição pelas diversas formas de trabalho precarizado. O exemplo das cooperativas talvez seja mais esclarecedor. Na sua origem, elas nasceram como instrumentos de luta operária contra o desemprego, o encerramento das fábricas, o despotismo do trabalho etc. Hoje, entretanto, contrariamente a essa autêntica motivação original, os capitais criam "falsas cooperativas" como instrumental importante para depauperar ainda mais as condições de remuneração da força do trabalho e aumentar os níveis da sua exploração, fazendo erodir ainda mais os seus direitos.
É neste quadro, caracterizado por um processo tendencial de precarização estrutural do trabalho, em amplitude ainda maior, que os capitais globais estão a exigir também a desmontagem da legislação social protetora do trabalho. E flexibilizar a legislação social do trabalho significa aumentar ainda mais os mecanismos de extração do sobretrabalho, ampliar as formas de precarização e destruição dos direitos sociais que foram arduamente conquistados pela classe trabalhadora, desde o início da Revolução Industrial, na Inglaterra. Deste modo, individualização, informalidade, terceirização, precarização, mercadorização do trabalho informacional são tendências centrais no mundo do trabalho hoje, e todas elas trazem embutidas uma tendência precarizante.
No seu livro Adeus ao Trabalho? Ensaio Sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho, você trata num dos capítulos da crise contemporânea dos sindicatos, da crescente redução das taxas de sindicalização e das dificuldades de representação dos sindicatos. Que repercussões as mudanças do mundo do trabalho estão a provocar nos sindicatos?
As repercussões são profundas. Estamos a presenciar os limites profundos do sindicalismo vertical, oriundo da fábrica taylorista e fordista, em decorrência do nascimento e expansão da fábrica flexibilizada e informatizada da era da acumulação flexível, que desconcentra o espaço físico produtivo e procura sistematicamente destruir os laços de pertença de classe dos trabalhadores. É imperioso hoje avançar na direção de um sindicalismo mais horizontalizado, menos prisioneiro de uma visão categorial e em direção a um sentido mais classista.
Um sindicalismo que deve aglutinar e organizar o conjunto dos trabalhadores/as. A fragmentação, heterogeneização e complexificação da classe trabalhadora questionam também o próprio fundamento do sindicalismo tradicional do século XX e tolhem a capacidade de organização sindical de vários contingentes que compreendem o mundo do trabalho.
A nova morfologia do trabalho não poderia deixar de afetar os organismos de representação dos trabalhadores. Se a indústria taylorista e fordista é, enquanto tendência, não mais dominante como no passado recente, um sindicalismo verticalizado não pode mais representar esse novo e compósito mundo do trabalho, que deve caminhar em direção a um sindicalismo mais horizontalizado e de base.
Tenho defendido uma tese polémica para a esquerda: devemos reconhecer que há um processo de des-hierarquização dos organismos de classe. O mais importante hoje (seja um movimento social, um sindicato ou mesmo um partido) é apreender as questões vitais, as raízes das mazelas e engrenagens sociais do capital.
Classe trabalhadora» é uma condição de particularidade, um modo de ser com claros, intrínsecos e inelimináveis elementos relacionais de objetividade e subjetividade. Isto é, para falar de classe trabalhadora é preciso referir-se aos seus valores políticos, ideários, ideologia, pertença e consciência de classe etc. É por isso que considero que a classe trabalhadora tem papel fundamental na luta política entre as classes. É mesmo na materialidade do sistema e na sua potencialidade subjetiva que o seu papel se torna central. Assim, em sentido amplo, incorpora a totalidade daqueles/as que vendem a sua força de trabalho em troca de salário, tanto no mundo industrial, nos serviços e no campo, como o proletariado rural que vende a sua força de trabalho para o capital, os chamados boias-frias das regiões agroindustriais (do Brasil) do etanol; incorpora também o proletariado precarizado, fabril e de serviços, part time, que se caracteriza pelo vínculo de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em expansão na totalidade do mundo do capital. Inclui também - e isso é decisivo hoje - a totalidade dos trabalhadores desempregados.
Limites profundos do sindicalismo» A intensificação do neocorporativismo sindical procura preservar os interesses da parcela mais "estável" da categoria à qual se vincula o sindicato, desconsiderando os segmentos que compreendem o trabalho precário, terceirizado, parcial, o proletariado fabril e de serviços. Os sindicatos devem urgentemente procurar novas formas de estruturação e organização que incorporem amplos e diferenciados setores que hoje compreendem o conjunto da classe trabalhadora.
No livro O Caracol e sua Concha Ensaios Sobre a Nova Morfologia do Trabalho, dá continuidade às suas reflexões sobre o mundo do trabalho, registadas em outros livros. Num cenário de competição global, do conhecimento e informação, trabalho material e imaterial são fenómenos distintos?
São todos eles, nas suas especificidades, parte do trabalho social, complexo e combinado que gera valor, mais-valia e valoriza o capital. Ao contrário das formulações desconstrutoras do trabalho, essas novas modalidades (incluindo o chamado trabalho imaterial, que não produz um bem diretamente material) são expressões do trabalho vivo, participantes da cadeia geradora de valor e do processo de valorização do capital. Como pude desenvolver no meu livro Os sentidos do trabalho (Boitempo), ciência e trabalho mesclam-se ainda mais diretamente no mundo da produção e dele fazem parte, tanto a forma dominante do trabalho material como a modalidade tendencial do trabalho imaterial.
O maquinário informacional-digital avançado existente hoje é resultado da interação ativa entre o saber intelectual do trabalho que atua junto à máquina informatizada, uma vez que são "órgãos do cérebro humano logrado pelas mãos humanas", conforme a caracterização de Marx nos Grundrisse, dando novas dimensões e configurações à teoria do valor, que articula, portanto, tanto trabalho material como imaterial, ambos imprescindíveis para a criação de mais-valia e que são parte constitutiva do trabalho social, complexo e combinado existente em escala global.
Assim, ao contrário dos que negam a teoria do valor, a forma imaterial do trabalho e da produção não leva à negação da lei do valor, mas, ao contrário, agrega coágulos de trabalho vivo na lógica da acumulação de capital na sua materialidade, inserindo-os no tempo social médio necessário para a produção de mercadorias. E os capitais sabem bem disso: não é outro o motivo da Toyota, na sua unidade de Takaoka, usar esses dizeres: Yoi kangae, yoi shina ("bons pensamentos significam bons produtos").
Valorização do capital» O capitalismo contemporâneo vem, desde o início dos anos 1970, acentuando a sua lógica destrutiva, quer em relação à natureza, quer em relação ao mundo do trabalho. O padrão de acumulação capitalista, estruturado sob o binómio taylorismo e fordismo, foi bastante alterado, mesclado ou mesmo substituído pelas formas produtivas ‑ exibilizadas e desregulamentadas, das quais a chamada acumulação ‑ exível e o toyotismo são exemplos, e que ocorreram em plena vigência da pragmática neoliberal, privatista, desregulamentadora e nanceirizada. A articulação entre reestruturação produtiva e neoliberalismo, as duas pontas das formas de dominação do capital hoje, teve agudas consequências no mundo do trabalho.
A despeito das inter-relações funcionais do indivíduo, da sociedade e da cultura e dos desafios e projeções da nova morfologia da classe trabalhadora, neste século XXI mais ampliada, fragmentada, heterogénea, que repercussões as mudanças do mundo do trabalho estão a provocar na educação, na aprendizagem prática, na empresa, em casa, no prosseguimento do progresso tecnológico?
A educação taylorista-fordista foi essencialmente uma educação parcelar, hierarquizada, em que a gerência científica elaborava e os trabalhadores executavam. Desenvolveu-se tomando a sociedade do automóvel como protótipo. A disjuntiva homo sapiens e homo faber é a sua expressão típica. Consolidou-se então uma divisão clara entre as ciências exatas, as biomédicas, as humanas e, com isso, desenvolveu-se uma educação para o trabalho unilateralizado, seja nas escolas técnicas profissionalizantes, seja nas escolas superiores: as médicas, as humanas, as engenharias.
É o que recentemente denominei como sendo a pragmática da especialização fragmentada e parcelar, ou seja, uma educação moldada por uma pragmática tecnocientífica, qualificadora do mercado de trabalho gerencial, profissional etc., que conformou a chamada "sociedade do trabalho" ao longo do século XX. Com a reestruturação produtiva do capital e a sua era da acumulação flexível, volátil, financeirizada e liofilizada, a educação que os ideólogos do capital hoje defendem deve ser a educação volátil, rápida, ágil e enxuta, como as empresas a concebem e a praticam, como nos exemplos das universidades corporativas, uma evidente contradição em termos, pois universidade rima com universalidade e não com corporação.
Assim, menor tempo de escolarização, ensino não presencial, "multifuncional", "polivalente" (no sentido restrito que o mercado as concebe) - estas são as concepções que dominam a chamada "educação enxuta e flexível". Trata-se, então, de outra pragmática, agora compatível com uma sociedade liofilizada e voltada estritamente para os valores do mercado restritivo e destrutivo.
Na sociologia pública há uma espécie de diálogo e conversação permanente com o marxismo. Na literatura atual, alguns sociólogos argumentam que vivemos uma época de mudanças, de legitimidades em debate e de antimarxismo. A extensão dessas concepções é uma tendência de mudança de paradigmas e da regressão das políticas sociais transformadoras?
A tese mais central da Sociologia Pública pode ser assim sintetizada: se o ponto de vista da economia é o mercado e a sua expansão, e o ponto de vista da ciência política é o Estado e a garantia da estabilidade política, então o ponto de vista da Sociologia Pública é a sociedade civil e a defesa do social. Em tempos de tirania do mercado e de despotismo do Estado, a Sociologia - em particular a sua face pública - defende os interesses da humanidade, como disse recentemente o sociólogo progressista norte-americano Burawoy. Trata-se, portanto, de uma vertente com uma formulação próxima do marxismo e contra as tendências mais conservadoras, especialmente da Sociologia norte-americana. Ela defende uma Sociologia Pública composta por sociólogos orgânicos nas suas relações com os sindicatos, associações de bairro, comunidades e grupos de imigrantes, organizações de direitos humanos etc. E, ao fazer isso, torna-se uma aliada dos que elaboram e praticam uma teria social de inspiração marxista.
Quanto à questão da "mudança de paradigma", tenho uma leitura bastante crítica, uma vez que esta concepção é eivada de um significado epistemologizante que cria paradigmas nos quais a realidade concreta tem que se "encaixar". A minha formação marxista de inspiração ontológica caminha em sentido inverso, visto que confere um primado à realidade concreta e ao objeto em relação ao processo de conhecimento, refutando por essa razão as teses acerca da "mudança de paradigmas".
Significado epistemologizante» As concepções pós-modernas, que refutam as análises mais abrangentes e totalizantes, vêm mostrando-se absolutamente incapazes de compreender o mundo contemporâneo na sua complexidade. Basta pensar que a mais recente crise estrutural do capital fez ressurgir o pensamento de nem mais nem menos que de Marx e da sua obra magistral “O Capital”, sendo que os pós-modernos nem sequer dizem algo minimamente razoável acerca da profunda radicalidade e contundência desta crise.
O livro Infoproletários: Degradação Real do Trabalho aborda os assalariados do trabalho precarizado do telemarketing, dos trabalhadores de call centers e do mundo virtual, assim como o impacto das novas tecnologias no mundo do trabalho, a classe trabalhadora globalizada, a alienação do trabalho à escala global. Comente esses aspectos, por favor.
O termo infoproletariado, conforme aparece no livro referido, organizado por Ruy Braga e por mim, onde desenvolvemos a tese de que há um novo contingente em franca expansão na classe trabalhadora, uma espécie de proletariado de serviços que compreende os trabalhadores das tecnologias de comunicação e informação, uma variedade ampliada que abarca desde os trabalhadores/as nas indústrias de software, até aqueles/as que se empregam nas empresas de call center e telemarketing e que fazem parte do que denomino como sendo a nova morfologia do trabalho. Eles são parte do que a socióloga do trabalho inglesa Ursula Huws chamou de cybertariado ou o que, segundo o nosso livro mencionado, tratamos por infoproletariado.
Com a privatização das telecomunicações e o seu processo de mercadorização, intensificou-se o processo de terceirização do trabalho, ampliando a classe trabalhadora como resultado dessa mercadorização dos serviços que foram privatizados. Portanto, pensar a classe trabalhadora hoje obriga-nos a compreender também esse amplo contingente de assalariados. Naturalmente, o trabalho nas tecnologias de informação tem especificidades, no que concerne às formas de reificação, estranhamento ou alienação, pois trata-se de um trabalho que vivencia quotidianamente o fetiche da técnica, tendo, por isso, marcas ainda mais profundas na sua interiorização.
Na análise sociológica da tecno­logia, alguns autores a despeito dos impactos sociais provocados por novas tecnologias concebem a tecnologia como algo exte­rior à sociedade. O que mudou na relação tecnologia e trabalho em termos de representação na análise sociológica?
Não concordo com a tese da transformação da ciência na principal força produtiva e muito menos de que ela seja autónoma. Esta concepção desconsidera um elemento essencial dado pela complexidade das relações entre a teoria do valor, ciência e trabalho, isto é, desconsidera que o trabalho vivo, em interação com a ciência e a tecnologia, constitui uma complexa e contraditória relação social capitalista, que tolhe e limita a expansão autónoma da ciência. Como indiquei no livro Os sentidos do trabalho, não se trata de dizer que a teoria do valor-trabalho desconhece o papel crescente da ciência no mundo produtivo, o que seria algo grotesco, mas que a ciência se encontra plasmada por relações capitalistas, está no limite, impedida na sua possibilidade de desenvolvimento autónomo, uma vez que se encontra subordinada às relações entre capital e trabalho, a qual a ciência não pode superar.
E é esta restrição estrutural, que libera e mesmo impele a expansão da ciência para o incremento último da produção de valores de troca, que impede o salto qualitativo societal para uma sociedade produtora de bens úteis segundo a lógica do tempo disponível. Por isso a ciência não se pode converter na principal força produtiva dotada de autonomia. Sendo prisioneira desta base material, menos do que uma cientificização da tecnologia de que equivocamente falou Habermas, há um processo de tecnologização da ciência, conforme indica precisamente o filósofo húngaro István Mészáros. Sendo prisioneira do solo material estruturado pelo capital, a ciência não pode tornar-se a sua principal força produtiva, mas ela interage com o trabalho, pois isso é imprescindível para participar do processo de valorização do capital.
Curiosamente, ao contrário, portanto, do admirável mundo da ciência com satisfação no trabalho, tenho afirmado que a era da informatização do trabalho, típica da fase informacional-digital, tem aumentado a época da informalização do trabalho, com o aumento da precarização enquanto límpida tendência dominante, quando se analisa o mundo do trabalho.
No artigo "Afinal, Quem é a Classe Trabalhadora Hoje?", publicado originalmente na revista Margem Esquerda, edição n.º 7, você descreve a classe trabalhadora enquanto um conjunto ampliado de trabalhadores nas suas múltiplas variações ocupacionais. Nesta sociedade atual, marcada pelo desenvolvimento das forças produtivas, desenvolvimento tecnocientífico, inovações tecnológicas, automação, robótica, informática, cibernética, quem é mesmo proletário do ponto de vista marxista?
Sabemos que Marx e Engels consideravam classe trabalhadora, trabalhadores e proletariado como sinónimos. E mais, que na Europa de meados do século XIX os operários que inspiraram a reflexão e ação de ambos ganhavam expressão corpórea no proletariado industrial, que recebia a denominação comum ora de classe trabalhadora, ora de proletariado.
Creio, então, que nosso principal desafio teórico e político hoje é procurar entender quem é essa classe trabalhadora, esse proletariado moderno, ou o que denominei de modo abrangente como a classe-que-vive-do-trabalho. De modo sintético, pode-se afirmar que ela compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho e que são despossuídos dos meios de produção, conforme a definição marxiana. Tem como núcleo central o conjunto do que Marx chamou de trabalhadores produtivos, que são produtores de mais-valia; que são pagos por capital-dinheiro; expressam uma forma de trabalho coletivo e social e que realizam tanto trabalho material quanto imaterial.
Portanto, a classe trabalhadora (ou o proletariado) hoje não se restringe somente aos trabalhadores produtivos e nem apenas aos trabalhadores manuais diretos, mas incorpora a totalidade do trabalho coletivo que vende a sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário para valorizar o capital. É a composição do conjunto de trabalhadores produtivos que produzem mais-valia e que participam do processo de valorização do capital, mas dela são parte evidente todos aqueles/as que vivem da venda da sua força de trabalho, incluindo os chamados improdutivos, os terceirizados e os desempregados. Assim, na minha opinião, a classe trabalhadora incorpora também o conjunto dos trabalhadores improdutivos, aqueles cujas formas de trabalho são utilizadas como serviços, seja para uso público, como os serviços públicos tradicionais, seja para uso capitalista.
É por isso que a classe trabalhadora hoje é mais ampla, heterogénea, complexa e fragmentada do que o proletariado industrial do século XIX e início do século XX, pois também o capitalismo tem condicionantes muito diferentes daqueles existentes na sua génese.
Na nossa concepção ampliada estão excluídos da classe trabalhadora os gestores do capital, que são parte constitutiva da classe dominante, pelo papel central que têm no controlo, hierarquia, mando e gestão do capital e do seu processo de valorização, bem como os pequenos empresários, a pequena burguesia urbana e rural que é detentora - ainda que em pequena escala - dos meios de sua produção. Por fim, estão excluídos também aqueles que vivem de juros e da especulação.
Diversos autores, entre os quais Sérgio Prieb (O Trabalho à Beira do Abismo Uma Crítica Marxista à Tese do fim da Centralidade do Trabalho), destacam que as transformações que estão a ocorrer no mundo do trabalho, com o desenvolvimento de inovações tecnológicas, ao contrário de diminuírem o esforço dos trabalhadores, aumentam a precarização e, em consequência, a exploração. Comente os efeitos desta configuração dinâmica determinada pela natureza da sociedade atual.
Como pude indicar na resposta anterior, em plena era da informatização do trabalho, estamos a conhecer a época da informalização do trabalho, dos terceirizados, precarizados, subcontratados, flexibilizados, trabalhadores em tempo parcial, do subproletariado. Se, no passado recente, só marginalmente a classe trabalhadora presenciava níveis de informalidade, hoje é explosivo o índice dos que se encontram nessa condição, ou seja, dos que são desprovidos de direitos, fora da rede de proteção social e sem carteira de trabalho. Desemprego ampliado, precarização intensificada, arrocho salarial acentuado, perda de direitos, esse é o desenho mais frequente da classe trabalhadora. Mas atenção: a causa não é a tecnologia (que não tem vida própria), mas a lógica destrutiva do capital que comanda uma dada forma de tecnologia.
Dou um exemplo claro: hoje a humanidade poderia trabalhar muito menos horas por dia (ou por semana), tendo um tempo ampliado fora do trabalho, capaz de se converter autenticamente em tempo livre. Mas para isso é imprescindível quebrar a lógica do capital, do mercado, do dinheiro, o que recoloca no centro do debate a questão de estruturar um movo modo de vida, um novo sistema de metabolismo social que reponha o tema vital do socialismo. Uma breve mirada pelo cenário atual aponta para um século XXI com alta temperatura nas confrontações entre a totalidade do trabalho social e a totalidade do capital global, na sua multiplicidade de formas, na sua grande maioria articulando interesses de classe, género, etnia, gerações, que estamos a vivenciar hoje em praticamente todos os continentes, da Ásia à Europa, do Oriente Médio à América Latina e à África, com as suas particularidades e singularidades. Tudo muito distante do que o grotesco Fukuyama um dia chamou de fim da história.
*Ricardo Antunes - especialista em Sociologia do Trabalho, professor titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi visiting research fellow na Universidade de Sussex, Inglaterra. Fez concurso para livre-docência em 1994 no IFCH da Unicamp, em Sociologia do Trabalho e para titular no ano 2000. Fez mestrado em Ciência Política na Unicamp em 1980 e doutorado em Sociologia, pela Universidade de São Paulo (USP) em 1986. Recebeu o prémio Zeferino Vaz da Unicamp (2003) e a Cátedra Florestan Fernandes da CLACSO em 2002. É pesquisador do CNPq. Autor de uma vasta obra, na qual se destacam Adeus ao trabalho? (Editora Cortez); Os sentidos do trabalho (Editora Boitempo); O novo sindicalismo no Brasil (Editora Pontes). Atualmente coordena as coleções "Mundo do Trabalho", pela Boitempo Editorial, e "Trabalho e Emancipação", pela Editora Expressão Popular. Colabora regularmente em revistas no exterior e no Brasil. Em outubro de 2011 lançou também pela Boitempo o livro O continente do labor.

2 comentários:

  1. Porque não paramos de vez esta coisa e dizemos que sem nós não há economia...??!!

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    1. Isso sabem ELES e por isso o plano está bem montado e os trabalhadores também...

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