Entrevista ao Padre Jardim Moreira – texto de Cesaltina Pinto
É um padre que não se cansa de remar contra a corrente. Luta por um plano de erradicação da pobreza que vá além do assistencialismo e da esmola. Pretende a participação da sociedade civil e do próprio excluído na busca de uma solução. Faz duras críticas à Igreja por esta não partilhar os seus bens e demonstra como a associação Igreja/Estado nas IPSS pode ser.
Há 20 anos que o Padre Jardim Moreira, 69 anos, preside à EAPN Portugal, Rede Europeia Anti-Pobreza. E há cerca de 40 anos é pároco em 2 das mais pobres freguesias do Porto: S. Nicolau e Vitória. Aqui tem a gestão de 7 centros sociais, tendo "inventado" para alguns, um sistema de "apadrinhamento", de modo a reunir financiadores da sociedade civil e voluntários. Deste modo, consegue acolher crianças dos 6 aos 10 anos, que não estão abrangidas por qualquer acordo com o centro regional de Segurança Social.
Quanto à EAPN Portugal, conta já com 18 núcleos distritais e ganhou, em 2010, o prémio dos Direitos Humanos atribuído pela Assembleia da República pelo trabalho desenvolvido. São vários os grupos a trabalhar com populações excluídas, de onde resultam políticas orientadoras para as instâncias decisoras.
Porque é que se meteu nestas coisas?
Tinha pedido ao Bispo que me desse uma zona pobre e descristianizada. Ele deu-me o pior que tinha: S. Nicolau, primeiro e Vitória, depois. Na altura, para ir à Ribeira tinha de ir escoltado. Corria o risco de me darem um empurrão e deitarem-me ao rio! Pus-me a pensar: estou todo entusiasmado com a renovação teológica do Vaticano II mas ninguém quer ouvir. Não vale a pena. Comecei a estar mais atento às escrituras e concluí: a fé sem obras é morta, não vale a pena. Então, há que ir ao encontro das pessoas e começar a fazer o levantamento sociológico. Quais são os grandes problemas desta gente? Os idosos e as crianças abandonadas...
Qual é o seu objetivo?
O mais importante é que se assuma a partilha e a corresponsabilidade para a construção de uma nova sociedade, fraterna e mais justa. É esta consciência, lenta e progressiva, de que temos de mudar de mentalidade, de assumir uma corresponsabilidade e construir também a nossa própria segurança. Porque a segurança dos outros e dos pobres é também a nossa segurança.
O Cristo que a Igreja celebra e adora no altar é o mesmo que está esfarrapado na rua ou na criança abandonada a jogar à bola. É preciso não desvirtuar isto. "Tudo que fizeres ao teu irmão mais pequenino e mais pobre é a mim que o fazes". A fé cristã não pode deixar de identificar o Cristo místico, do altar, com o Cristo real, humano, vítima de situações da sociedade em que está inserido. A minha postura é a de servir, com a consciência de que sirvo a Deus servindo os irmãos.
Sei que muitos dizem: "eh pá, você tem menos devoções na igreja". Mas onde está a Igreja? A Igreja é a casa ou são as pessoas? São as pessoas! O templo vivo de Deus são as pessoas. Vamos fazer devoções a quem? Ao gato? Ou cuidar das pessoas diretamente e tratá-las?
"O assistencialismo humilha aqueles que recebem"
Não gosta das políticas assistencialistas...
É aqui que está o nó da questão. Admito que em momentos de crise se possa aceitar almofadas para que se evite violência e as pessoas que têm fome não morram de fome. Mas essa não é a solução para que se saia da miséria e desemprego. Mesmo vindo na forma de emergência social...
A Igreja tem a missão de amar o seu semelhante, como Cristo nos ama a nós. O amor aos outros é de partilha, não é de dar esmola. O cristão não está chamado a dar esmolas. O cristão está chamado a partilhar: quem tem duas túnicas, dê uma a quem não tem, quem tem casa, dê casa a quem não tem. Há aqui uma partilha efetiva. Donde, a Igreja não pode ficar sob a proteção do Estado e do dinheiro que recebe do Estado para os seus centros sociais ou de outras instituições ou até para a Caritas, ignorando a sua missão de identidade fundamental da sua credibilidade. A igreja não é uma sucursal do Estado.
Diz isso por causa das IPSS?
Sabe que se fala muito de IPSS ou de centros sociais paroquiais. A gente faz um acordo com o Estado e ele dá-nos uma verba para executar determinada função. Tem de prestar contas e se não fizer é penalizado e excluído. Por outro lado, a Igreja administra tudo isto a preço zero, o que quer dizer que as políticas sociais do Estado são muito mais baratas. As organizações do terceiro setor - economia social, nem é estado, nem é mercado - são constituídas pela sociedade civil, que se cotiza e desenvolve ações sociais sem fins lucrativos. Diga-me onde isto existe em Portugal? Existe muito pouco, talvez nalgum setor da Gulbenkian, do Montepio...
E porquê?
A conclusão a que se pode chegar é a de que a economia social são na prática, e na sua maioria, apenas instituições para públicas. Isto é, pagas pelo erário público para realizar as políticas sociais do Estado. Vê a escandaleira que isso é?
Por estarem sobretudo organizadas em IPSS e receberem dinheiro do Estado e não da comunidade?
Exato. Raramente a igreja se organiza com os seus próprios bens para exercer ação social sem fins lucrativos.
"Não chega dar o euro"
O que está a dizer é que a Igreja, se quisesse, tinha fundos suficientes para fazer coisas desse tipo, autónomas?
A Igreja se quiser assumir a sua condição fraterna tem de os ter, tem de os partilhar. E a Igreja não o faz. E às vezes investem não sei se na parte mais importante da sua missão. Estive recentemente em Boston, onde a Igreja investe essencialmente em casas para dar respostas sociais. Isto é que é a Igreja, o resto é conversa. E aqui, o que acontece? Se aparece um padre louco, como eu, que partiu do zero, e tenho a obra que tenho... a Igreja não me apoiou, calou-se.
Mas podia ter apoiado?
Tinha a obrigação de...Numa zona tão problemática e tão desumanizada era aqui que deveria pôr o enfoque de uma resposta estruturada e organizada. Nós somos simplesmente egoístas. Há um centro social para Miragaia, outro para S. Nicolau, outro para a Vitória, para a Sé... técnicos são aos montes... E depois não se consegue articular nem organizar, porque temos um sistema completamente anacrónico.
Qual seria a alternativa?
Ter uma visão aberta, de trabalho em parceria. Podíamos trabalhar em conjunto e fazer um trabalho articulado. Diminuiríamos custos e rentabilizávamos respostas. Vamos ter que mudar, porque a continuar assim o dinheiro não chega. Vão fechar muitas instituições por não terem dinheiro para pagar as dívidas. Aqueles que não têm dívidas podem rentabilizar, mudando o esquema estrutural de presença no meio e inventar as respostas. Temos de mudar de estrutura, mentalidade, objetivos, da forma de intervir, em que a pessoa seja, desde a mais tenra idade à paz terminal, o valor máximo de uma sociedade a atingir e a respeitar. Temos de mudar a mentalidade. Não chega dar o euro. Muitas vezes, a resposta social do vizinho é mais útil do que um euro.
Como distingue uma ação de assistencialismo puro e de caridade da tal partilha que diz dever existir?
Há duas coisas. Primeiro, se é da igreja tem de se organizar por amor, não pode ser por outro motivo. Por amor partilha o bem com os que não o têm. Pode não ser dinheiro nem alimentação. Pode ser a habitação, pode ser o esforço de se arranjar um emprego. Tem de ser a partilha do problema, assumir o problema dos outros como seu.
"Os pobres também gostam de roupa nova"
Mas quando alguém compra comida no supermercado para deixar no banco alimentar contra a fome de certa forma está a partilhar. E quando dão roupas que já não usam também...
(risos) Quando dão roupas que não usam geralmente fazem uma limpeza à casa e ficam livres dos tarecos que já não gostam. Costumo dizer que os pobres também gostam de roupa nova. Essa é que é a partilha. Um cristão deve usar, se calhar, mais um ano a roupa velha e dar uma nova. Porque os outros também gostam de um fato novo. É isso que uma mãe faria aos filhos, deixaria de comprar um fato novo para comprar um novo para os seus filhos. Isto é por amor. Se não for por amor, não se atinge o cristianismo, nem a essência da fé.
Dar de comer no banco da fome é uma partilha só para matar a fome. Não é responsabilizante do doador. A pessoa pagou o litro de leite e pensa que já fez a sua boa ação. Eu costumo ridicularizar dizendo: "dê o euro". Mas isto não é de "dar o euro". Isto é de partilhar a sorte do meu semelhante. É outra coisa. Claro que a sociedade civil faz isto, e faz bem. Não vamos dizer que faz mal. Mas temos de ir mais longe. Essa é apenas uma das possíveis vertentes, a mais simples e a mais cómoda.
O que pode alterar a vida das pessoas?
É construirmos entre nós, cristãos, formas concretas onde eu partilhe daquilo que me faz falta, e não dê apenas o que me sobra. Temos de ver qual o diagnóstico e que condições são necessárias para que aquela pessoa possa sair da situação de desumanidade ou de injustiça em que está mergulhada, e se torne uma pessoa ativa e construtora na vida social. Que possa ganhar o seu sustento sem precisar de o mendigar. Não podemos criar um país de mendicidade.
Não concordo que uma política social se baseie na subsídio dependência. Isto é um país que vai à ruína. Estamos lá de qualquer forma. Querer continuar a responder com um sistema que mantem a pessoa na dependência não só desrespeita a sua dignidade, como as humilha. Porque obriga a estender a mão todos os dias, em vez de lhe dar condições para poder sair da sua situação. Temos cabecinha, imaginação e criatividade para arranjar respostas novas.
Quais?
Dar formação as mães solteiras e monoparentais e ensiná-las a administrar o dinheiro, por exemplo. Não sabem. Vi isso nos Estados Unidos... ajudar a perceber onde o dinheiro é bem ou mal gasto, para ao fim de uns meses poder sobreviver. É preciso ensinar as pessoas a não gastar só dinheiro no tabaco, no café, no lanche. Podem fazer o pequeno-almoço em casa, reduzir o tabaco... Há que reduzir. É preciso saber gerir o pouco que se tem.
"A sociedade civil foi desresponsabilizada"
Essa não é uma função que devia estar remetida ao estado, já que pagamos impostos?
(risos) Vou ser mais uma vez crítico. O Estado, a partir do 25 de Abril, entregou isto à Igreja. A Igreja estava acusada de estar com o regime, portanto, tinha de encontrar uma alternativa para estar com os pobres. E aceitou, de bom grado, a proposta de contratualizar com o governo fazer ação social barata. Um euro na mão de uma IPSS produz muito mais do que na mão de outros. Ora bem, há aqui uma certa promiscuidade. Isto é, a Igreja assume como sua a ação social que realiza e o Estado está tranquilo porque realiza as políticas sociais através das IPSS. Mas a verdade é esta: a sociedade civil foi desresponsabilizada da sua tarefa e - ainda pior, no meu entender - foi que o governo tornou-se demasiado tutelar, dominador e prepotente, indo até ao controlo de todas as Igrejas, até da educação privada e cristã; e a Igreja também se deixou ficar, porque aparentemente tem instituições sociais onde o senhor padre preside. Mas o facto de presidir não quer dizer que pratique o Evangelho... Pode não praticar, porque não é a expressão da vida cristã da sua comunidade.
A pobreza tem causas estruturais. Desde o 25 abril até hoje já passaram vários governos e sempre mantiveram os 20% de pobres no país. Quer dizer que as várias políticas que se aplicaram na ação social não foram capazes de alterar a fonte geradora da pobreza.
A pobreza resolve-se com subsídios!? A luta contra a pobreza é o desenvolvimento integral da pessoa humana até à sua participação ativa na sociedade de que faz parte, por direito e não por favor. Ando nisto há 20 anos, sabe...e isto custa-me.
Qual a sua maior frustração?
Saber que tenho proposto aos sucessivos governos que é preciso um plano nacional que analise, articule e reduza custos... Gasta-se milhões e milhões de euros nos projetos de luta contra a pobreza e se pedir uma avaliação disso tudo não há. Se pedir um resultado de um projeto não tem. Quer dizer que andamos aí a servir dinheiro no tempo das vacas gordas sem termos feito nenhum projeto que tenha hoje continuidade, ou que possa ter. Isto é de uma irresponsabilidade... foi uma forma de calar os pobres, ou os amigos, porque há instituições construídas de raiz, caríssimas, que estão fechadas porque não têm utentes.
Quais?
Quais, não posso dizer.
Incomoda-me é que o Estado actue, por vezes, como se fosse uma sucursal da Igreja!
ResponderEliminarFélix da Costa
ResponderEliminarAgora é a UE a investir na economia social, entregando ao 3º setor essa responsabilidade...